domingo, 29 de outubro de 2017

A Oeste Nada de Novo

A Oeste Nada de Novo de Eric Maria Remarque

Um dos mais extraordinários livros que li até a hoje. A vida e morte nas trincheiras alemãs da Primeira Grande Guerra.

Sabemos como é difícil traduzir por palavras as grandes emoções, as mais fortes experiências emocionais e humanas, como quando delas falamos sentimos que muito ficou por dizer, que o discurso falado ou escrito não permite transmitir a vivência por que passamos. Os sobreviventes dos recentes incêndios resumem na palavra Inferno a provação por que passaram, mas pouco mais conseguem exprimir verbalmente.

Essa é a arte de Eric Maria Remarque a de nos transportar para o interior das trincheiras enlameadas e cheias de ratos, para o interior de buracos de obuses, para a frente de combate, nos fazer sentir o medo, a angústia, a indiferença e a revolta do combatente, para nos irmanar com aqueles que morrem por uma causa fútil a que são alheios.

As personagens que nos apresenta são jovens, muitos com menos de 20 anos, atirados sem preparação para as primeiras linhas onde são massacrados aos milhares. Estudantes, camponeses, operários, procuram desesperadamente sobreviver aos ataques inimigos, aos bombardeamentos contínuos, à fome persistente, às doenças, com esprito de entreajuda mas sem esperança.

Os soldados falam das causas da guerra. Oiçamos a sua voz “Mas lembra-te de que somos quase todos do povo e em França a maioria é de trabalhadores, operários e pequenos empregados. Porque é que um sapateiro, ou um serralheiro francês nos quereria atacar? Não, são apenas os governos. Nunca vi um francês antes de vir para aqui e o mesmo acontece com a maior parte dos franceses no que nos diz respeito. Pediram-lhes tanto a sua opinião quanto a nós”. Outro soldado pergunta “Porque há, então, a guerra?” e alguém responde “Deve haver pessoas a quem a guerra aproveita”. Todos concordam que “Está bem!, mas eu não sou dessas”.

Como tantas guerra que só aproveitam às elites económicas e militares. Aos soldados resta “A trincheira, o hospital e a vala comum: não há outras alternativas”.

A carnificina ganha novos contornos á medida que a guerra se aproxima do fim “Este Verão de 1918 é o mais árduo e o mais sangrento de todos. Os dias são como anjos vestidos de ouro e azul, impassíveis sobre o campo da destruição”. O contraste entre a natureza vibrante do sol de ouro sob um céu perfeito e os mortos no campo de batalha. “Nunca se suportou em silêncio mais dores do que no momento em que se parte para as primeiras linhas. Aparecem as falsas notícias, tão excitantes de armistício e de paz; perturbam os corações e tornam as partidas mais molestas que nunca”.

 E é a poucos meses da Paz que o nosso soldado, depois de ter visto todos os seus amigos e a maioria dos seus colegas de escola morrer no campo de batalha, recebe um tiro fatal num dia tão calmo que o comunicado diário do exercito se limitou a assinalar que na frente “ oeste nada de novo”.

domingo, 22 de outubro de 2017

Amada Vida


Amada Vida por Alice Munro

Uma coleção de 14 contos da famosa autora canadiana publicados em 2012. No ano seguinte Alice Munro (n. 1931) ganhou merecidamente o Prémio Nobel da Literatura.

Sobressai, como pano de fundo, de forma nebulosa e ténue a atmosfera da sociedade das pequenas vilas de província, que não são rurais mas também não completamente urbanas, com os seus dramas humanos, com as suas idiossincrasias, com as suas paisagens imersas na Natureza florescente da zona do Lago Huron.

Muitos dos contos reunidos em Amada Vida, Dear Life no original, tinham já sido publicados anteriormente nomeadamente em revistas e jornais literários.

As personagens são complexas e muitas vezes tocadas, feridas ou traumatizadas física ou psicologicamente por acontecimentos ou doenças que as empurram para comportamentos por vezes estranhos que se iluminam com a revelação da sua condição.

A atenção ao detalhe, ao enquadramento ambiental, a minúcia de análise dos sentimentos e processos psicológicos, ajuda-nos a compreender a natureza humana e os complicados labirintos da mente humana.

Particularmente interessantes são história de “Noite” sobre uma obsessão infantil, “À vista do Lago” uma reflexão sobre a perda da memória, Dolly que nos conta um reencontro inesperado e improvável.

A velhice “a única coisa que me incomodava, um bocadinho, era o pressuposto de que nada mais iria acontecer na nossa vida. Nada de importante que tivéssemos de gerir”, a reacção á deficiência “Nunca fale da minha perna ao papá, que ele fica apoplético” disse ela. Uma vez despediu não apenas um miúdo que costumava meter-se comigo, mas toda a família”, a dolorosa descoberta de um embuste, a sensação de culpa depois do adultério, muitos são os temas, muitas são as ocasiões para observar a vida quotidiana sob uma lupa reveladora dos movimentos subterrâneos da alma.  

Um livro indispensável para conhecer a obra de Alice Munro.

sexta-feira, 13 de outubro de 2017

O Fim do Homem Soviético

O Fim do Homem Soviético de Svetlana Aleksievitch

Natália Igrunova definiu, com rigor e perspicácia, a escrita de Svetlana Aleksievitch como sendo a “síntese da literatura documental e literatura de ficção”.

Algures entre a História contemporânea, a Sociologia e a Literatura este livro baseado em múltiplos depoimentos ficcionados, essencialmente de intelectuais mas também incluindo testemunhos de pessoas comuns, traça um perfil da desgraça, provocada nos anos 90 pelo fim do Socialismo, que se abateu sobre os países da antiga URSS.
  
O tom é claro, a maioria das pessoas não queria o fim do socialismo, não queria o capitalismo selvagem que se seguiu, não queria o desmembramento sangrento da URSS em múltiplos países, apenas queriam um novo alento económico e alguma abertura política, em suma o que alguns apelidam de “socialismo de rosto humano”.

Muitos os que participaram nas manifestações em prol de Ieltsin, dos que se opuseram ao Socialismo, ficaram desiludidos e, a maioria, na miséria material, despedidos dos seus empregos, obrigados a abandonar as suas profissões intelectuais e a trabalhar em empregos que consideram inferiores. Uma pessoa diz “Fomos de uma ingenuidade repugnante” outra afirma “O comunismo é o futuro da Humanidade. Não há alternativa”.

A própria Svetlana faz a seguinte síntese do que ouviu “ Não negam a crueldade de Estaline, nem as repressões, mas dizem que o poder soviético era justo para com as pessoas simples, que uma pessoa que tivesse dinheiro não era tão impudente como os capitalistas de hoje, não havia tanta corrupção. Para a geração mais velha, o principal foi a perda do homem bondoso, com uma vida comum, de igualdade sob tutela do Estado. Muitas das pessoas da minha geração, em especial os intelectuais, continuam excluídas da vida lançadas na pobreza”.

Com o fim do socialismo vastas camadas sociais foram lançadas na miséria “Um quilo de carne custava trezentos e vinte rublos e o ordenado da tia Olga eram cem rublos – era professora numa escola primária”, “Não entro em lojas caras, tenho vergonha; há seguranças que me olham com desprezo”.

Nos países que se separaram da URSS as diversas minorias lançaram-se numa guerra fratricida que custou a vida a dezenas de milhares de homens, mulheres e crianças e obrigou centenas de milhares de outras a ter de fugir da sua terra e a procurar refúgio noutros lugares. “Há um mês éramos soviéticos, e, de repente, éramos georgianos, ou abecásios, ou russos”, “ Na escola soviética ensinavam a toda a gente: os homens são amigos, camaradas e irmãos”. Depois do Socialismo os massacres interétnicos começaram “Lembro-me da tia Sónia, uma amiga da minha mãe … Uma noite mataram os vizinhos dela… uma família georgiana de quem ela era amiga. E duas crianças pequenas”.

Um livro muito interessante, muito bem escrito, que merece ser lido com sentido critico. Curiosamente o título original em russo é “Tempo em Segunda Mão”.

Em 2015 o Prémio Nobel da Literatura foi atribuído a Svetlana Aleksievitch.