quarta-feira, 12 de setembro de 2018

Chiquinho


Chiquinho de Baltasar Lopes

A excelência, para usar um termo do reino da gestão e da economia, na literatura obtém-se aliando a psicologia, a densidade dos personagens, desvendando as suas motivações, emoções e idiossincrasias, e a sociologia, descrevendo transversalmente a sociedade com certeira capacidade crítica e distanciamento temporal num enredo contado com a vivacidade e o ritmo adequados.

É na mestria destes elementos que se destaca Chiquinho a obra-prima de Baltasar Lopes da Silva (1907-1989) que, repleta de laivos autobiográficos, nos conta a história de Francisco Soares um jovem de São Nicolau, tal como o autor nascido na aldeia do Caleijão, desde a escola primária até que parte embarcado com destino aos Estados Unidos procurar uma nova vida.

Como podemos esquecer personagens como Tói Mulato o rapaz inteligente que a pobreza impediu de continuar a estudar, Chico Zepa, “o trancador da barca Wanderer”, Totone Menga-Menga um misto de filósofo popular e curandeiro cheio de sabedoria e bom senso- “um sábio igual aqueles que no principio do mundo andavam de terra em terra ensinando e dando concelhos à gente”, nhô Chic’Ana morto de fome em ano de seca e criminoso abandono, ou nha Tosa Calita, conhecida por Camões, contando histórias à boca da noite a uma roda de crianças e tantas outras figuras que preenchem este livro.

Um livro que nos apresenta uma sociedade periférica, uma ilha pobre num arquipélago esquecido, dividida entre uma agrícola de penúria, um funcionalismo medíocre, um pequeno comércio sem futuro e o mar. Uma sociedade repartida entre a enxada e o oceano. 

O mar levava diretamente para as fábricas nos Estados Unidos, onde os Portuguese Black Men eram explorados, ou para a pesca da baleia, arte em que os cabo-verdianos eram mestres. O dinheiro do Mar minorava a pobreza de Terra.

Dividido em três capítulos, Chquinho, conta-nos primeiro a vida em S. Nicolau, no segundo apresenta-nos São Vicente, já em crise quando o carvão está a ser abandonado e o porto se encontra em total declínio, e o terceiro, e mais dramático, relata-nos um ano de seca e de fome.

A escravização de seres humanos, realidade recente e presente, é vista de modo dúbio: Por um lado conta “Grande negreiro era nhô Maninho Bento, capitão de navios de escravatura. Ia buscar negros à Costa de África para Cabo Verde, Brasil e Oeste Índia. Os escravos vinham em três mastros, a monte, e dizia-se que em viagem muitos morriam e os botavam no mar, Mamãe Velha ainda conheceu um escravo trazido por nhô Maninho …. Ficaram na tradição as crieldades de nhô Maninho … nhô Quimquim Soares era outro Senhor cruel com os escravos. Botava-lhes correntes nos pés para o trabalho. Por qualquer coisa, dava-lhes de rebém nas cortaduras punha sal e pimenta”. Por outro diz que alguns eram bem tratados.

Como não chorar com a morte das crianças da aldeia, como não se emocionar com o funeral de nhô Chic’Ana, como não se revoltar com a brutalidade das autoridades portuguesas que nada fazendo para minorar a fome nesta sua colónia, carregam sobre os manifestantes pacíficos que descem à cidade a pedir socorro.

E Andrezinho, o jovem intelectual, que reúne em seu redor os alunos do Liceu e procura lançar um movimento intelectual focado nos problemas da terra e da sociedade, pondo de lado o ensino oficial centrado em realidades distantes e sem qualquer relacionamento com Cabo Verde. Aí podemos encontrar bem plasmado o espirito, consubstanciado no lema de “fincar os pés no chão”, que animou o movimento Claridade de que Baltasar Lopes da Silva foi um dos expoentes. Será Andrezinho Manuel Lopes?

Importante também a centralidade da morna na sociedade de São Vicente e o uso da língua cabo-verdiana que encontra lugar no texto em termos de letras de canções mas que se nota em expressões em português que decalcam expressões na língua materna.

Compreendemos como a pobreza, a estagnação económica, o isolamento, vão esfriando as esperanças das gerações e impelindo-as para, nas classes mais instruídas, o álcool e para as amantes.  

Imprescindível para conhecer a sociedade cabo-verdiana da primeira metade do século XX. Um livro que contém um mundo.


Literariamente, provavelmente, o melhor romance em língua portuguesa do século XX.

 


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