Chiquinho de Baltasar Lopes
A excelência, para usar um termo do reino da
gestão e da economia, na literatura obtém-se aliando a psicologia, a densidade
dos personagens, desvendando as suas motivações, emoções e idiossincrasias, e a
sociologia, descrevendo transversalmente a sociedade com certeira capacidade crítica
e distanciamento temporal num enredo contado com a vivacidade e o ritmo
adequados.
É na mestria destes elementos que se destaca
Chiquinho a obra-prima de Baltasar Lopes da Silva (1907-1989) que, repleta de
laivos autobiográficos, nos conta a história de Francisco Soares um jovem de
São Nicolau, tal como o autor nascido na aldeia do Caleijão, desde a escola
primária até que parte embarcado com destino aos Estados Unidos procurar uma
nova vida.
Como podemos esquecer personagens como Tói
Mulato o rapaz inteligente que a pobreza impediu de continuar a estudar, Chico
Zepa, “o trancador da barca Wanderer”, Totone Menga-Menga um misto de filósofo
popular e curandeiro cheio de sabedoria e bom senso- “um sábio igual aqueles que no
principio do mundo andavam de terra em terra ensinando e dando concelhos à
gente”, nhô Chic’Ana morto de fome em ano de seca e criminoso abandono, ou nha
Tosa Calita, conhecida por Camões, contando histórias à boca da noite a uma
roda de crianças e tantas outras figuras que preenchem este livro.
Um livro que nos apresenta uma sociedade
periférica, uma ilha pobre num arquipélago esquecido, dividida entre uma agrícola
de penúria, um funcionalismo medíocre, um pequeno comércio sem futuro e o mar.
Uma sociedade repartida entre a enxada e o oceano.
O mar levava diretamente para as fábricas nos
Estados Unidos, onde os Portuguese Black Men eram explorados, ou para a pesca
da baleia, arte em que os cabo-verdianos eram mestres. O dinheiro do Mar minorava
a pobreza de Terra.
Dividido em três capítulos, Chquinho, conta-nos
primeiro a vida em S. Nicolau, no segundo apresenta-nos São Vicente, já em
crise quando o carvão está a ser abandonado e o porto se encontra em total
declínio, e o terceiro, e mais dramático, relata-nos um ano de seca e de fome.
A escravização de seres humanos, realidade
recente e presente, é vista de modo dúbio: Por um lado conta “Grande negreiro
era nhô Maninho Bento, capitão de navios de escravatura. Ia buscar negros à
Costa de África para Cabo Verde, Brasil e Oeste Índia. Os escravos vinham em
três mastros, a monte, e dizia-se que em viagem muitos morriam e os botavam no
mar, Mamãe Velha ainda conheceu um escravo trazido por nhô Maninho …. Ficaram
na tradição as crieldades de nhô Maninho … nhô Quimquim Soares era outro Senhor
cruel com os escravos. Botava-lhes correntes nos pés para o trabalho. Por
qualquer coisa, dava-lhes de rebém nas cortaduras punha sal e pimenta”. Por
outro diz que alguns eram bem tratados.
Como não chorar com a morte das crianças da
aldeia, como não se emocionar com o funeral de nhô Chic’Ana, como não se
revoltar com a brutalidade das autoridades portuguesas que nada fazendo para
minorar a fome nesta sua colónia, carregam sobre os manifestantes pacíficos que
descem à cidade a pedir socorro.
E Andrezinho, o jovem intelectual, que reúne em
seu redor os alunos do Liceu e procura lançar um movimento intelectual focado
nos problemas da terra e da sociedade, pondo de lado o ensino oficial centrado
em realidades distantes e sem qualquer relacionamento com Cabo Verde. Aí
podemos encontrar bem plasmado o espirito, consubstanciado no lema de “fincar
os pés no chão”, que animou o movimento Claridade de que Baltasar Lopes da
Silva foi um dos expoentes. Será Andrezinho Manuel Lopes?
Importante também a centralidade da morna na
sociedade de São Vicente e o uso da língua cabo-verdiana que encontra lugar no
texto em termos de letras de canções mas que se nota em expressões em português
que decalcam expressões na língua materna.
Compreendemos como a pobreza, a estagnação económica,
o isolamento, vão esfriando as esperanças das gerações e impelindo-as para, nas
classes mais instruídas, o álcool e para as amantes.
Imprescindível para conhecer a sociedade
cabo-verdiana da primeira metade do século XX. Um livro que contém um mundo.
Literariamente, provavelmente, o melhor
romance em língua portuguesa do século XX.