quarta-feira, 26 de setembro de 2018

Novela de Xadrez

Novela de Xadrez de Stefan Zweig

O formidável e ganancioso campeão mundial de xadrez, outrora simples camponês jugoslavo, treme perante um passageiro desconhecido durante uma viagem de navio rumo à Argentina. Mas depois de um primeiro sucesso este comporta-se de forma cada vez mais estranha.

Uma reflexão sobre a mente humana, os seus limites, e a rapidez com que da mais completa racionalidade resvala para a insanidade. Um mergulho profundo na massa cinzenta do ser humano, tendo como cenário a II Grande Guerra e a perseguição aos monárquicos na Áustria anexada.

A ausência, pobreza ou falta de diversidade de estímulos sensoriais externos podem levar a mente inteligente a fechar-se sobre si mesma, não no sentido de se desligar mas antes de se retirar gradualmente para um mundo imaginário até perder o contacto com a realidade.

A demonstração que mesmo no mais puro delírio ilusório a racionalidade pode permanecer sem que com isso a consciência não deixe de estar completamente toldada.

A impaciência com os seus traços de desassossego, inquietação e febril agitação que podem, depois, desembocar em violência inexplicável surgem como indícios, sinais de alerta que a mente perturbada oferece ao mundo exterior. Para que este, alertado, aja e a salve.

O xadrez como jogo de estratégia, de pura inteligência, capaz de ser dominado com destreza, engenho e maestria tanto pelo pobre e ignaro camponês como pelo mais sofisticado, culto e diplomático advogado da refinada aristocracia vienense.

Stefen Zweig (1881-1942), de ascendência judaica, perseguido na sua Áustria natal pelo regime fascista de Dollfuss exilou-se no estrangeiro. Em 1942 suicidou-se no Brasil tendo deixado um conjunto de cartas a amigos sobre o seu ato.

Curiosa a frase final da carta de despedida “Saúdo todos os meus amigos! Que possam ainda vislumbrar a aurora matinal após a longa noite. Eu, demasiado impaciente, vou-me embora antes”. Sublinho a palavra impaciente.

quarta-feira, 19 de setembro de 2018

A Questão do Estado: questão central de cada Revolução

A Questão do Estado: questão central de cada Revolução
por Álvaro Cunhal

Escrito em 1967 este texto analisa do ponto de vista marxista um tema central da discussão política dos círculos oposicionistas ao Estado Novo. A questão de deixar ou não intocado o aparelho de Estado fascista após o derrube da ditadura.

Cunhal começa por revisitar as teses de Marx e de Lenine, em que se filia, sobre o Estado e por precisar os conceitos de ditadura e democracia. Recorda que “numa sociedade dividida em classes antagónicas, Estado é sinonimo de ditadura”. No entanto as formas como essa ditadura se exerce não é indiferente “Nada tem a ver com o marxismo-leninismo a opinião anarquizante segundo a qual é indiferente à classe operária que o poder da burguesia se exerça num regime parlamentar ou numa ditadura fascista…” mas antes pelo contrário “o proletariado está interessado em lutar para que a ditadura da burguesia se exerça através de formas o mais democráticas possível, pois estas não só são as que menos sofrimento lhe acarretam, como são aquelas que melhor lhe permitem defender os seus direitos, forjar a sua unidade, reforçar as suas organizações, limitar e enfraquecer o poder dos monopólios …”.

Por outro lado o Estado proletário, como instrumentos para o comunismo e para a sociedade sem classes ”é sempre mais democrático que o Estado burguês”.

Na segunda parte Cunhal critica os oposicionistas agrupados em torno da Carta de Acção Democrata-Social que pretendiam algumas reformas que deixariam “o aparelho de Estado … intacto no fundamental”. Defende em alternativa a necessidade de destruir o Estado fascista substituindo-o por outro Democrático.
Cunhal também se opõe à visão de alguns oposicionistas de esquerda que acalentavam a ilusão de subir ao poder e usar a estrutura de Estado fascista ao serviço dos ideais democráticos. A estes ensina-lhes pelo exemplo histórico dos que tentaram essa via no passado que tal não será possível.

Um livro que a partir de uma polémica concreta num momento histórico determinado se consegue elevar, pelo nível da análise, ao estatuto de texto teórico marxista que mantém toda a sua atualidade e pode ser usado na compreensão da situação presente do nosso país.

quarta-feira, 12 de setembro de 2018

Chiquinho


Chiquinho de Baltasar Lopes

A excelência, para usar um termo do reino da gestão e da economia, na literatura obtém-se aliando a psicologia, a densidade dos personagens, desvendando as suas motivações, emoções e idiossincrasias, e a sociologia, descrevendo transversalmente a sociedade com certeira capacidade crítica e distanciamento temporal num enredo contado com a vivacidade e o ritmo adequados.

É na mestria destes elementos que se destaca Chiquinho a obra-prima de Baltasar Lopes da Silva (1907-1989) que, repleta de laivos autobiográficos, nos conta a história de Francisco Soares um jovem de São Nicolau, tal como o autor nascido na aldeia do Caleijão, desde a escola primária até que parte embarcado com destino aos Estados Unidos procurar uma nova vida.

Como podemos esquecer personagens como Tói Mulato o rapaz inteligente que a pobreza impediu de continuar a estudar, Chico Zepa, “o trancador da barca Wanderer”, Totone Menga-Menga um misto de filósofo popular e curandeiro cheio de sabedoria e bom senso- “um sábio igual aqueles que no principio do mundo andavam de terra em terra ensinando e dando concelhos à gente”, nhô Chic’Ana morto de fome em ano de seca e criminoso abandono, ou nha Tosa Calita, conhecida por Camões, contando histórias à boca da noite a uma roda de crianças e tantas outras figuras que preenchem este livro.

Um livro que nos apresenta uma sociedade periférica, uma ilha pobre num arquipélago esquecido, dividida entre uma agrícola de penúria, um funcionalismo medíocre, um pequeno comércio sem futuro e o mar. Uma sociedade repartida entre a enxada e o oceano. 

O mar levava diretamente para as fábricas nos Estados Unidos, onde os Portuguese Black Men eram explorados, ou para a pesca da baleia, arte em que os cabo-verdianos eram mestres. O dinheiro do Mar minorava a pobreza de Terra.

Dividido em três capítulos, Chquinho, conta-nos primeiro a vida em S. Nicolau, no segundo apresenta-nos São Vicente, já em crise quando o carvão está a ser abandonado e o porto se encontra em total declínio, e o terceiro, e mais dramático, relata-nos um ano de seca e de fome.

A escravização de seres humanos, realidade recente e presente, é vista de modo dúbio: Por um lado conta “Grande negreiro era nhô Maninho Bento, capitão de navios de escravatura. Ia buscar negros à Costa de África para Cabo Verde, Brasil e Oeste Índia. Os escravos vinham em três mastros, a monte, e dizia-se que em viagem muitos morriam e os botavam no mar, Mamãe Velha ainda conheceu um escravo trazido por nhô Maninho …. Ficaram na tradição as crieldades de nhô Maninho … nhô Quimquim Soares era outro Senhor cruel com os escravos. Botava-lhes correntes nos pés para o trabalho. Por qualquer coisa, dava-lhes de rebém nas cortaduras punha sal e pimenta”. Por outro diz que alguns eram bem tratados.

Como não chorar com a morte das crianças da aldeia, como não se emocionar com o funeral de nhô Chic’Ana, como não se revoltar com a brutalidade das autoridades portuguesas que nada fazendo para minorar a fome nesta sua colónia, carregam sobre os manifestantes pacíficos que descem à cidade a pedir socorro.

E Andrezinho, o jovem intelectual, que reúne em seu redor os alunos do Liceu e procura lançar um movimento intelectual focado nos problemas da terra e da sociedade, pondo de lado o ensino oficial centrado em realidades distantes e sem qualquer relacionamento com Cabo Verde. Aí podemos encontrar bem plasmado o espirito, consubstanciado no lema de “fincar os pés no chão”, que animou o movimento Claridade de que Baltasar Lopes da Silva foi um dos expoentes. Será Andrezinho Manuel Lopes?

Importante também a centralidade da morna na sociedade de São Vicente e o uso da língua cabo-verdiana que encontra lugar no texto em termos de letras de canções mas que se nota em expressões em português que decalcam expressões na língua materna.

Compreendemos como a pobreza, a estagnação económica, o isolamento, vão esfriando as esperanças das gerações e impelindo-as para, nas classes mais instruídas, o álcool e para as amantes.  

Imprescindível para conhecer a sociedade cabo-verdiana da primeira metade do século XX. Um livro que contém um mundo.


Literariamente, provavelmente, o melhor romance em língua portuguesa do século XX.