quarta-feira, 30 de janeiro de 2019

O Livro de Areia

O Livro de Areia por Jorge Luís Borges

Reli com surpresa e maravilha o Livro de Areia conjunto de treze contos de Jorge Luís Borges, encontrando novos pontos de reflexão e encanto.

O primeiro conto, o Outro, fala-nos de um encontro impossível, fora do tempo e do espaço, de nós connosco próprios em fases diferentes da vida. Que teríamos a dizer-nos, que concelhos daria o eu mais velho ao eu mais novo? Que aspirações e lembranças queria o mais novo que perdurassem no mais velho? Que silencio se instalaria? “Meio século não passa em vão. Dessa nossa conversa de pessoas de variadas leituras e gostos diversos, compreendi que não poderíamos entender-nos”.

Ulrica é um dos raros escritos de Borges habitados por uma mulher e por um amor carnal que contudo está envolto no sobrenatural – “O esperado leito duplicava-se num vago espelho e o lustroso mogno recordou-me o espelho das Escrituras. Ulrica já se tinha despido. Chamou-me pelo meu verdadeiro nome Javier. Senti que a neve ameaçava. Já não quedavam móveis nem espelhos. Não havia uma espada entre os dois. Como a areia, escoava-se o tempo. Secular na sombra fluiu o amor e possuí pela primeira e última vez a imagem de Ulrica”.

O Congresso aborda um dos temas maiores do escritor, a espantosa unidade na diversidade do Universo, onde tudo cabe em simultâneo. É na fruição do momento que nos integramos no todo em que tudo está inexplicavelmente interligado.

There are more things, intitulado assim mesmo em inglês, apresenta-nos uma casa assombrada, a Casa Colorada, em que vive um ser misterioso. “Muitas vezes repeti para mim que não há outro enigma para além do tempo, essa infinita trama do ontem, do hoje, do amanhã, do sempre e do nunca”.

A origem do nome de A seita dos Trinta explicada por uma interpretação da morte de Cristo em que “Voluntários só houve dois: o Redentor e Judas. Este arrojou as trinta moedas que eram o preço da salvação das almas e logo se enforcou”. Na noite das mercês um jovem conheceu o amor e viu a morte. Em O espelho e a mascara o bardo norueguês procura as palavras exatas, belas e imorais para exaltar os feitos do seu Rei, e descobre que a Beleza tem um preço. Undr relata-nos a busca de um homem da palavra que concatene toda a beleza do mundo e nos maravilhe.

Utopia de um homem que está cansado trata da vida longa e saudável, do aborrecimento e do suicídio. O suborno passa-se no meio universitário e nas vaidades e rivalidades que aí se estabelecem, como subornar o insubornável?

Avelino Arredondo planeou e levou à pratica um ato terrível hoje dá o nome a uma rua da sua cidade natal. O disco de Odin conduz-nos às profundezas negras e racionais da alma humana e às suas desastrosas consequências.

Por último o Livro de Areia mostra-nos um livro infinito, sem princípio nem fim.

Uma escrita enxuta e sintética mas simultaneamente repleta de referências eruditas, exaltante e misteriosa, profunda e leve, sempre fundindo o tempo, religando acontecimentos díspares, revelando o que está velado para lá das aparências inofensivas.

Os países europeus vêm o misterioso, o sensual, o enigmático, o exótico nos povos do Sul como tão bem explicou o palestino Edward Said no seu clássico Orientalismo. Mas Borges como escritor argentino encontra a sua fonte inspiradora dos seus belos contos fantásticos, cultos, intrincados, imaginativos e inquietantes no frio Norte, na Inglaterra saxónica, nas planícies junto ao Vístula, na fria Escandinávia. Uma subtil ironia tanto ao seu gosto.

Jorge Luís Borges (1899-1986) é, muito justamente, considerado por muitos o maior escritor do século XX.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2019

Balada de Amor ao Vento


Balada de Amor ao Vento de Paulina Chiziane

A sociedade rural moçambicana com a sua organização tradicional, com o seu sincretismo capaz de aglutinar as tradições animistas com os seus curandeiros e feiticeiras com a religião cristã, o colonialismo com a sua violência e crueldade, são o pano de fundo para esta história de amor entre uma rainha e um plebeu.

Uma crítica mordaz e feroz da poligamia de alguns povos moçambicanos, das suas práticas casamenteiras e da violência sobre as mulheres presente nessas sociedades tradicionais. Critica que contudo pode, por vezes, parecer não levar em conta a história e o contexto em que essas práticas se desenvolveram. Mas o amor que se sente genuíno e profundo que a autora revela por esse povo simples redime qualquer leve vestígio de etnocentrismo.

A sabedoria popular “nem todas as lágrimas são tristezas, nem todos os sorrisos são alegrias. Os teus antepassados fremiam de dor, mas cantavam belas canções quando partiam para a escravatura. Os mortos vestem-se de gala quando vão a enterrar. Os vivos semeiam jardins nos túmulos tal como hoje te oferecemos flores. Os condenados sorriem quando caminham para o cadafalso mas choram quando são libertados”, a força do amor “a trama dos meus dedos pesca cardumes de raminhos secos, pedrinhas, folhinhas perdidas, bolinhos de areia, meu Deus eu sou a faúlha, eu faísco, meu marido é palha de coco, o meu marido é lenha de sândalo, é petróleo para eu acender, para juntos ardermos, juntos explodirmos com o ribombar do nosso amor” são temas presentes admiravelmente tratados.

O desejo de vida, de realização “sentia que vida devia ser algo mais do que nascer, sofrer, lavrar e morrer” leva-nos a abandonar o que temos e a recomeçar sempre na busca incessante da felicidade “descobriu que o ser humano tem várias mortes em vida, possuindo também poderes de autorressurreição”, para no final encontrar a paz junto dos que ama verdadeiramente.

Uma escrita bela e poética, um ambiente que mantendo-se realista nos transmite a espaços uma atmosfera onírica carregada de significados e premunições.

Paulina Chiziane (n. 1955) é uma escritora moçambicana, a Balada de Amor ao Vento, editado em 1990, foi o seu primeiro romance. Em 2003 ganhou o Prémio José Craveirinha pelo seu livro Niketche: Uma História de Poligamia.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2019

Identidades


Identidades por Francis Fukuyama

Como definimos a nossa identidade? Sobre valores e experiências partilháveis ou sobre experiências vividas, não partilháveis este é o dilema que Fukuyama apresenta e que pensa ser o problema central da política atual e da emergência da extrema-direita apelidada de populista.

Uma certa esquerda, a partir dos anos 70, pensando erradamente estar numa sociedade de bem-estar geral, pós-capitalista e pós-moderna, alienou a sua base trabalhadora e entrincheirou-se exclusivamente na defesa dos direitos de minorias étnicas, de género (movimento LGBT) perdendo de vista as causas profundas da discriminação destes grupos.

Foi uma solução útil porque lhe permitiu alinhar-se com as classes dominantes já que os direitos que defendia para as minorias não implicavam qualquer cedência económica e, na verdade, esses direitos foram conquistados, muitas vezes, a troco de cedências económicas ao patronato.

Veja-se a evolução a partir dos anos 80 em Portugal nas políticas conduzidas pelo PS e BE. Nesse ponto concordamos com Fukuyama quando escreve “muita da esquerda parou de pensar há várias décadas sobre políticas sociais ambiciosas que pudessem ajudar a remediar as condições de base dos pobres. Era mais fácil falar de respeito e dignidade do que apresentar planos potencialmente dispendiosos que reduzissem concretamente a desigualdade”.

Também concordamos com Fukuyama quando afirma que “a diversidade não pode ser uma base de identidade por si só e em si mesma”. Uma nação, para sobreviver como sociedade coesa tem de ter uma identidade que agregue as pessoas com diversas identidades étnicas, religiosas, de género, linguísticas ou outras. Sem esse chapéu agregador a sociedade tende a atomizar-se e a permitir o domínio do grupo economicamente mais forte.

Concordamos igualmente que esse cimento agregador, essa identidade coletiva, deve ter uma base “doutrinal” e ser “socialmente construído” e não ter por base a etnia, a religião o género ou a língua.

Obviamente discordo da “doutrina”, a doutrina da democracia liberal norte-americana, que propõe como agregadora. Aqui Fukuyama cego pela ideologia não vê que foi essa doutrina que criou a atual situação de fragmentação que como ele próprio refere está na base do populismo de extrema-direita. Outra doutrina é necessária.

Fukuyama, contudo, põe o mundo às avessas e adota uma visão idealista do mundo, em que são as ideias a moldar a realidade e não o contrário. De facto a fragmentação das identidades, a deriva de uma certa esquerda, são consequências e não causas. São consequências da dominação mundial das multinacionais, da mundialização económica e do seu sistema neoliberal imposto à maioria dos países e que implica a desregulamentação financeira, económica, laboral e cultural. Os Estados mais frágeis entraram em colapso e tornaram-se estados falhados com a ajuda de intervenções externas. A ideologia da fragmentação das identidades é fruto deste novo estádio de desenvolvimento económico e social.

Por outro lado essa fragmentação tem uma base material. É inegável o racismo, a desigualdade de género, a luta pela igualdade da comunidade LGBT, a luta pelo reconhecimento das línguas e culturas minoritárias. O que é necessário não é suprimir essas lutas, mas sim integra-las numa identidade mais vasta assente em princípios e valores de justiça, igualdade e numa doutrina de libertação da Humanidade.

Francis Fukuyama, é um cientista político norte-americano, muito alinhado com a política externa norte-americana, e que se celebrizou com a sua obra de 1989, O Fim da História em que defendeu que a Humanidade tinha chegado ao seu último estádio, a democracia liberal, e que para ela não haveria qualquer alternativa.