segunda-feira, 27 de março de 2023

Abelhas Cinzentas

Abelhas Cinzentas de Andrei Kurkov

 

A zona cinzenta era a zona no Donbass que separava os territórios controlados pelos separatistas e as forças ucranianas, uma estreita faixa territorial entre os dois contendores, uma zona- de-ninguém acordada entre os dois exércitos. Aí nessas terras do fim do mundo, numa pequena aldeia, de apenas duas ruas, dois habitantes um russo e um ucraniano levam uma vida solitária e espartana, sobrevivendo sem eletricidade, sem acesso a bens de primeira necessidade, mas recusando-se a abandonar a sua terra.

 

O romance centra-se no ucraniano, um inspetor mineiro precocemente reformado por causa da silicose que se dedica corpo e alma à apicultura. Por amor às abelhas ele vai empreender uma longa viagem de ida e volta que o levará à Crimeia.

 

Infelizmente as fortes lentes nacionalistas do autor, estranhamente nascido na Rússia, levam-no a posições a preto e branco em que os russos são sempre os vilões e os ucranianos os heróis. Estas lentes transformam o que poderia ser um interessante romance sobre a vida em tempo de guerra torna-se um longo texto de propaganda sem grande valor.

 

Andrei Kurkov (n. 1961) escritor ucraniano que escreve em russo (língua proibida pelo Governo ucraniano em 2014). Em 2018 foi nomeado Presidente do Pen Club da Ucrânia.


 

quarta-feira, 15 de março de 2023

O Mundo Visto do Meio

 

O Mundo Visto do Meio de Conceição Lima

 

Este é um livro duplo, primeiro as cronicas/conto e depois uma breve peça “Um Auto do Século XX”. Em comum têm São Tomé e Príncipe, a sua história, a sua natureza, as suas gentes com os seus idiomas, a sua cultura e as suas idiossincrasias.

 

A peça é um diálogo entre o Governador colonialista, o brutal e tristemente célebre Carlos Gorgulho, o militar que querendo forçar os forros santomenses à servidão nas roças os reprimiu com violência criminosa matando, ferindo e deportando, e Saturnino da Graça, um filho da terra, engenheiro e defensor do povo. Um diálogo entre o colonialismo e aqueles que lhe fizeram frente de cabeça erguida.

 

As crónicas/contos espraiam-se por um conjunto largo de temas, incluindo pequenos episódios, breves biografias, reflexões sobre natureza das ilhas com a sua flora e fauna, comentário político, cultura santomense da culinária à música. Todas são, simultaneamente, datadas no sentido em que intervém sobre um momento específico do percurso de São Tomé e Príncipe, e perenes na medida em que se trata de momentos importantes da História do país.

 

A escrita de Conceição Lima é bela, de grande sensibilidade, de atenção ao detalhe prendendo-nos ao texto, fixando a nossa atenção e admiração. O estilo de crónica-conto é uma marca distintiva deste livro.

sexta-feira, 10 de março de 2023

A Dolorosa Raiz do Micondó

A Dolorosa Raiz do Micondó de Conceição Lima

 

Nos primeiros poemas a memória, o combate, a longa e dolorosa via para a libertação convoca a identidade coletiva, as múltiplas faces de um mesmo sofrimento às mãos de um colonialismo brutal e imoral. Ecoam na primeira pessoa do plural. Aqui se destacam o comovente “Canto Obscuro às Raízes” e o admirável “1953”. São as dolorosas raízes coletivas.

 

Depois o tom muda e torna-se intimista, regressando à infância, aos tempos “Quando eu não sabia que era eu”, viajando pelos cheiros, pela flora, pela fauna, pelos lugares que vamos descobrindo quando crescemos e que nos prendem para sempre à nossa terra, e as pessoas que povoaram o tempo de meninice, as tias, as primas, os familiares e conhecidos, as pessoas que nos fazem sentir seguros e amados, as pessoas a quem pertencemos. Aqui o poema escreve-se na primeira pessoa. São as agridoces raízes pessoais, individuais.

 

Estas duas raízes forjam a nossa identidade, criam-nos enquanto pessoas.

 

Na forma versos que de Camões a frásica estrutura amiúde guardam. Versos que fluem com força, com sinceridade, com alma e singela beleza e nos comovem primeiro e nos enternecem depois.

 

Conceição Lima (n. 1961) é uma poetisa e cronista são-tomense. Jornalista e produtora trabalhou nos Serviços em Língua Portuguesa da BBC.