quinta-feira, 21 de março de 2024

Uma brancura luminosa


 

Uma brancura luminosa de Jon Fosse

 

O fluxo da consciência, que encontramos em Virgínia Woolf ou James Joyce, retorna, como monólogo interior, neste livro de Jon Fosse de uma forma alegórica, sublime, triste e comovente.

 

Depois de errar em estrada desconhecida um homem dá por si a caminhar no interior de uma floresta escura e fria. Cansado e exausto, entrevê entre as árvores alguns vultos fantasmagóricos. A hora aproxima-se inexoravelmente. Começa a clarear e uma brancura luminosa imaculada a todos envolve.

 

Muitas interpretações possíveis para toda a trama, a estrada representando o nosso percurso na vida, em que, muitas vezes sem razão, mudamos de rumo e nos encurralamos em becos sem saída. A floresta escura como símbolo do nosso estado de espírito depressivo, de antecâmara da morte, de situação fatal.  

 

O estilo minimalista repetitivo, de minúsculos avanços, de detalhes significativos, de apoios inesperados, são muito característicos da obra de Jon Fosse. Temáticas difíceis tratadas com simplicidade e profundidade.

 

Jon Fosse (n.1959), dramaturgo, romancista norueguês venceu o Prémio Nobel da Literatura em 2023.

terça-feira, 19 de março de 2024

Um detalhe menor


 

Um detalhe menor de Adania Shibli

 

Uma jovem palestina quer descobrir mais detalhes sobre um assassinato que aconteceu na data do seu aniversário algures no deserto do Negueve há um quarto de século. Essa vontade leva-a a encetar um curto périplo de carro.

 

O medo omnipresente, os caminhos sempre vigiados, cortados, os bombardeamentos constantes, a morte como constante possibilidade, o quotidiano infernal de quem vive sob um regime colonial de brutalidade extrema, para que a vida humana dos ocupados nada vale.

 

A memória do que foi, das aldeias arrasadas, das populações expulsas, dos locais destruídos, substituídos, do seu país arrebatado pelo colonos, fixada no antigo mapa, no mapa palestino anterior a 1948, um tempo em que Israel não existia e a Palestina era pacífica e feliz. Um tempo antes da Nakba, da Catástrofe.

 

Um livro que urge ler, para perceber as terríveis imagens que nos entram pela televisão de crianças a morrer de fome e de um dos exércitos mais poderosos do mundo a bombardear hospitais e a impedir a entrada de ajuda humanitária. Um livro editado em 2022 que nos ajuda a perceber que nada começou a 7 de Outubro de 2023.

 

Adania Shibli (n. 1974), escritora palestina, doutorada no Reino Unido ensina na Universidade de Birzeit na Cisjordânia e na de Nottingham. Este livro recebeu numerosos prémios, incluindo o Feira do Livro de Frankfurt que, devido a pressão política de Israel que foi retirado.

segunda-feira, 4 de março de 2024

Negritude e humanismo


 

Negritude e humanismo de Alfredo Margarido

 

Pequeno, mas profundo, ensaio crítico da obra de Jean-Paul Sartre O Orfeu Negro, em que este analisa o conceito de negritude. Margarido procede sistemático a cada um exame dos seis eixos com os quais o Prémio Nobel define a negritude: o racismo anti-racista, o sentimento do coletivismo, o ritmo, a conceção sexual, a comunicação com a natureza e o culto dos antepassados. Mostra que todos partem de conceções idealistas, a-históricas e procura explicar cada um destes eixos através das suas causas materiais mais profundas. Segue aqui uma metodologia e uma aproximação marxista clássica, com excelentes resultados.

 

Por exemplo, Margarido mostra como o culto dos antepassados, erigido em característica do povo Negro por Sartre, se desvanece com a introdução das relações de produção capitalista, ou o sentimento coletivista da família muito alargada se retrai, como também aconteceu na Europa, quando o regime de salário individual, que mal permite a sobrevivência de uma pequena família, o destruiu (só estava ligado à produção agrícola tradicional). Fica claro que, na verdade, são as condições materiais de existência que explicam o reino das ideias e dos costumes sociais.

  

Um pequeno ensaio indispensável para perceber a sociedade contemporânea.

 

Alfredo Margarido (1928-2010), pintor e poeta surrealista, sociólogo, pensador marxista, viveu a partir de 1964 em Paris, ensinando em diversas universidades. Publicou diversas obras quer em Português quer em Francês.