quarta-feira, 28 de novembro de 2018

Terra sonâmbula

Terra sonâmbula de Mia Couto

Os efeitos devastadores, físicos e morais da guerra neocolonial em Moçambique aqui descritos e contados. Não de forma direta e realista mas efabulada, metaforizada, sem perder o conteúdo dramático e pungente do tema.

As comunicações, estradas, caminhos-de-ferro, cortadas impedem o abastecimento, a fome instala-se. As incursões de homens armados que violam e matam empurram as populações rurais a procurar refúgio noutras paragens.

Nascem os campos de refugiados, as famílias separam-se, desagregam-se, pessoas erram sem destino pelas paisagens poeirentas, a esperança dá lugar ao cansaço, ao desânimo, ao desalento, à vontade de lenta e docemente se fundir com a terra, de desaparecer no oceano, de fugir da realidade.

Neste ambiente de sofrimento e morte as pessoas refugiam-se no sonho, no mito, cresce uma atmosfera de dupla e febril irrealidade – o pesadelo persistente, duradoiro e desertificador da guerra e sonho interior com que cada individuo reage à dura e estranha realidade em que está mergulhado.

É neste mundo simultaneamente desumano e mortalmente real por um lado e doce e humanamente irreal por outro que as personagens se movem, angustiados, numa busca incessante e sempre insatisfeita.

A escrita de Mia Couto segue um padrão inovador e imaginativo ajustando a linguagem aos personagens, à atmosfera que pretende criar, à cultura local do seu país.

Muitas palavras novas, criadas pelo autor, introduzidas em catadupa no português erudito, cujo sentido é de perceção imediata, que clarificam ideias, que fundem conceitos e ultrapassam dificuldades de comunicação de forma simples, bela e eficaz. 

Como se não deliciar com “veementindo” (mentir veementemente) ou com “mancha-prazeres”, “contrabandalheiras”, “malvoroço” (alvoroço negativo), “anjonautas”, “redemoniaca” (remoinho demoníaco), “desconseguir”, “pensageiro”, “acrediteísta”, “cadeira rodoviária”, “berrafustar”, etc., etc.? É verdadeiramente de uma imaginação delirante.

As expressões e imagens novas também abundam. Veja-se “num estrelar de olhos”, “comidas bem cheias, dessas dos olhos salivarem na língua”, “vida estar a correr as mil porcarias”, “a memória não lhe tinha chegado aos olhos”, “nem temos onde cair vivos”,

Frases que nos fazem pensar: “nasci num tempo em que o tempo não acontece”, “ A dor, afinal, é uma janela por onde a morte nos espreita”, “A felicidade é uma coisa que os poderosos criaram para ilusão dos pobres”, “a escuridão nos faz nascer muitas cabeças”, “tinha de haver guerra, tinha que haver morte. E tudo para quê? Para autorizar o roubo”, “um sonâmbulo passeando entre o fogo”, “um coxo faz inveja a um paralítico”, “A riqueza é como o sal: só serve para temperar”, “em terra de cego quem tem um olho fica sem ele”, “o melhor da vida é o que não há de vir” e tantas outras.

Abre novos caminhos à Literatura em língua portuguesa. Ficará como marco de um novo e empolgante estilo literário.

quarta-feira, 21 de novembro de 2018

As Viagens Essenciais

As Viagens Essenciais de Mário Máximo

Um livro de poesia de Mário Máximo de cariz introspetivo, memorialista e sensual, em que as viagens se fazem no interior da alma do poeta sem exigir outras deslocações.  

Adotando nestes poemas uma postura excessivamente virada para dentro, para o seu próprio umbigo, Mário Máximo, acaba por cair num vazio existencialista, desolado, deserto e desalentado.  A estrutura do livro reflete esse fechamento sobre si mesmo, com os poemas iniciais ainda mantendo um contacto com a realidade exterior e depois pouco a pouco esta vai ser gradualmente mas completamente substituída pela realidade interior.

Esse enclausuramento não passa desapercebido ao poeta que escreve “Os instantes de vida sucedem-se e sinto-me encurralado. / Preso atrás de uma janela para a qual construí as grades”.

Um pequeno poema premonitório:
O fogo alastra
Vai consumindo mato e árvores. Chega às primeiras casas.
Aproxima-se das pessoas …

Retenho algumas estrofes que ressoam com a minha forma de encarar a vida e a intervenção na sociedade “Tudo é possível, agora eu o sei. E também as / utopias podem ser realizadas, / apesar dos corações descrentes / e das almas sem espírito de conquista” e mais à frente “As viagens essenciais só podem encontrar destino / no seu improvável fim. Talvez ao partir saibamos/ algumas das regras do jogo. Mas as outras regras / surgirão durante a caminhada. / E apenas no momento último de cada uma dessas viagens essenciais / podemos redigir o mapa das estações sublimes”.

Interessante a forma como caracteriza o presente “O mundo voltou aos momentos de tristeza mas ainda não é tempo / de grande guerra. / Um clima cinzento vai retirando o prazer / das coisas simples de ser. O medo do futuro voltou / a constituir ameaça. Mesmo nos lugares / onde tal sentimento costumava ser improvável”.

Excelentes algumas formulações como “o paraíso do voo”, “o cheiro a eternidade”, “frenesim de dados”, “fragrância que dourava o rosto de cada silaba”, “A noite é um lugar e um clima”. Mas infelizmente também um conjunto de lugares comuns como “missivas secretas”, “imaginações férteis” entre outras.

Uma edição, da Fonte da Palavra, pejada de gralhas e erros tipográficos que obstroem a leitura, desfazem o ritmo, dificultam a compreensão. Um trabalho amador e deficiente que o autor não merecia.

Aquando da publicação deste livro, em 2011, já Mário Máximo ostentava o merecido estatuto de poeta lusófono consagrado e com vasta obra publicada. Apesar de viver em Portugal a sua obra mantém-se, por incúria de editoras e autoridades culturais, pouco divulgada junto do grande público.

quarta-feira, 14 de novembro de 2018

The American Way of Poverty


The American Way of Poverty de Sasha Abramsky

Um relato da pobreza no país mais rico do mundo e propostas claras de como a combater e erradicar.

A fome assola as comunidades destituídas e as pequenas hortas individuais florescem em terrenos abandonados nas grandes metrópoles decadentes como Detroit. 12% da população americana passa fome e o Governo inventou mesmo uma nova expressão, mais suave, para descrever a situação “insegurança alimentar”.

Os mais jovens sofrem no país que proclama ser a terra da igualdade de oportunidades -“3 milhões de crianças vivem em famílias em que cada pessoa tem menos de dois dólares por dia”. Que oportunidades terão? Abramsky responde: “para milhões de americanos o seu nascimento é, na verdade, o seu destino”.

Milhões de pessoas fazem bicha para a sopa dos pobres. Muitos milhares de pessoas vivem da recolha de fios de cobre, de materiais de construção, de madeiras dos milhares de casas abandonadas. O número de sem-abrigo atinge recordes – as ruas, os parques de caravanas, os vãos das pontes, são locais hoje repletos de pessoas que aí vivem e dormem em tendas ou abrigos improvisados. As histórias impressionam.

No país em que a saúde está privatizada uma doença, que gere uma conta elevada, pode levar uma pessoa a perder tudo. Aqui lemos os casos de várias famílias.

O ordenado mínimo fixado em valores extraordinariamente baixos levam muitos dos que executam os trabalhos mais longos e duros a viver na miséria.

Crescem os abandonados na sociedade que vivem à sua margem, tornando-se “um povo soberano, demasiado pobre para sobreviver na economia legal e demasiado esquecido pelo governo para ver as suas vidas melhoradas pelos programas sociais. Para ter comida recorrem a plantação de subsistência. Para abrigo, dormem nos prédios abandonados que encontram. Não pagam impostos nem recebem assistência. Não esperam nada do Estado e não de desapontam 

O sistema social americano, vítima de cortes de financiamento sucessivos, está em ruínas incapaz de responder às necessidades da população pobre. E contudo com um sistema fiscal mais justo seria possível eliminar grande parte da pobreza.

Cortes no programa de SNAP (programa de suplemento alimentar de assistência) que atribui às famílias carenciadas um cartão com o qual podem comprar, até um limite pré-determinado e durante um período não muito longo, comida, voltaram a colocar os Estados Unidos no mapa da fome. Para que qualificar uma pessoa deve ter um rendimento que seja menos pouco acima da linha de pobreza estabelecida pelo governo federal, mas não pode ter nenhuns recursos financeiros – uma conta bancária com mais de 2.250 dólares não permite já que a pessoa possa receber esta prestação social.

O sistema de pensões, baseados em fundos de pensões de benefício não garantido, tem atirado para a pobreza os mais velhos que se vêm obrigados a trabalhar até ao fim da vida ou viver na miséria. Muitos destes fundos faliram durante as sucessivas crises bolsistas e imobiliárias deixando os seus clientes sem pensões.

A pobreza mina a democracia – “Incapazes de influenciar as políticas, cada vez mais pessoas simplesmente optam por desistir: não votando nas eleições, não se sindicalizando, não se informando sobre os grandes temas… E, ao optar por desistir apenas conseguem assegurar a sua contínua marginalização”.

As soluções apresentadas passam essencialmente por reforçar os programas existentes através de impostos sobre o trabalho, as transacções comerciais (IVA), e sobre os lucros das grandes empresas.

Um livro que nos trás uma realidade escondida e que nos faz pensar. Contudo a falta de ritmo da escrita, as constantes repetições de ideias, o estilo contido dos relatos, tornam-no leitura menos atractiva e, a espaços, entediante.

As soluções apresentadas surgem como confusas e pouco inovadoras, preferindo o autor propor de novo ideias anteriormente implementadas e que falharam.

A ideia central, com a qual concordo inteiramente, é a de que a pobreza se combate na sua origem: no desemprego (necessidade de investimentos públicos em alturas de recessão), nos salários baixos (ordenado mínimo decente), no acesso gratuito à saúde e à educação. Se assim for feito o combate à pobreza remanescente torna-se mais fácil com os recursos tradicionais.

Como sempre nestes casos não publicado em Portugal.