quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

Tanta Gente Mariana


Tanta gente Mariana por Maria Judite Carvalho

Uma novela e sete contos reunidos sob o título da novela, juntos também por uma sofrida temática feminista.

Contos sobre mulheres portuguesas dos anos 50 do século XX escritos por uma mulher da época. De certa forma datados, mas que nos transmitem uma imagem “fiel e verdadeira” do universo feminino da classe média em Portugal. Aqui vemos a mulher que já trabalha mas acantonada em profissões específicas, a modéstia dos rendimentos se sozinha, modéstia que, contudo, sempre possibilitando a contratação de pelo menos uma criada interna.

A mulher sofrida, incompreendida, solitária, doente, sem energia para lutar pelos seus sonhos, que aceita a sua condição subalterna em relação ao homem, que se curva ao destino sem luta nem esperança. A mulher fatalista, triste e amargurada.

Em Tanta Gente Mariana, contado na primeira pessoa, temos uma personagem doente, desenganada pelos médicos que se sente “Mole. E enjoada comigo própria como se me tivesse provado. Um pedaço de pão que depois de se mastigar durante muito tempo acabasse sabendo mal. Sabendo a mim própria, aos meus próprios sucos. Cuspi-me com desagrado para cima da cama e aqui fiquei líquida e espapaçada. É um estado de espírito entre calmo e desesperado com uma leve ansiedade à mistura.”

Vive num quarto, trabalha num escritório lisboeta, vai definhando sem dinheiro para os tratamentos enquanto faz o balanço da sua curta vida. Recorda o casamento, o divórcio, o filho que não nasceu e concluiu que “nunca soube estar. Escolhi sempre mal as ocasiões para falar e para ficar calada. Troquei tudo, baralhei todas as coisas a ponto de me não achar a mim própria”.

Em A Avó Cândida perpassa toda uma ironia, até no nome da velha senhora, sobre a hipocrisia moral da época. Em A Mãe temos de novo o espartilho conservador que leva uma mulher enganada a suicidar-se como forma de resistência. A Noite de Natal fala-nos do alcoolismo, da violência doméstica, e dos remorsos extremados.

O Passeio de Domingo centra-se num homem que, contudo, segue o mesmo perfil psicológico de abdicação dos sonhos. É um homem é uma metáfora para a Mulher.

Maria Judite Carvalho (1921-1998) é uma das principais escritoras portuguesas do século XX. Estranhamente esquecida.
  

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020

Da Prática e da Contradição

Da Prática e da Contradição de Mao Tsé-Tung

Um conjunto de textos de Mao Tsé-Tung (Mao Zedong na grafia actual) um dos mais destacados e profundos filósofos da corrente do materialismo-dialéctico do século XX.

Aqui reunidos obras clássicas como “Da Contradição” que aborda o aspecto principal da dialéctica e “Da Prática” mas outros igualmente importantes como “De onde vêm as ideias corretas”, “Conversas sobre questões de filosofia”. Também podemos ler textos mais abertamente políticos, como “Combater o liberalismo”, “O povo chinês não se deixa intimidar pela bomba atómica”,  ou económicos relativos à edificação do socialismo na China como “Sobre Problemas Económicos do Socialismo na URSS de Estaline” e outros.

Ressalta a profundidade e coerência do pensamento, a clareza da exposição de ideias e a capacidade de analisar cada tema de um ponto de vista materialista dialéctico pouco comum mesmo em autores que se reclamam do marxismo.

Um extracto “De onde vêm as ideias corretas? Cairão do céu? Não. São inatas? Não. Vêm da prática social e só dela; vêm de três tipos de prática social, a luta pela produção, a luta de classes e a experimentação científica. É o ser social do homem que determina o seu pensamento”.

Em “Da contradição” explica que “Ao longo de toda a história do conhecimento humano tem havido duas concepções sobre a lei do desenvolvimento do universo, a concepção metafísica e concepção dialéctica” a primeira “atribuem as causas do desenvolvimento a factores externos á sociedade, como a geografia e o clima. De forma simplista, procuram fora das coisas as causas do seu desenvolvimento e negam a teoria dialéctica materialista, segundo a qual o desenvolvimento das coisas nasce das respetivas contradições internas”.

A abrir tem um longo ensaio de Slavo Zizek que poderia ter sido evitado, uma vez que os escritos de Mao falam por si.

Um livro imprescindível para quem queira entender o materialismo-dialéctico e o movimento político do maoismo na China e fora dela.

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020

21 Lições para o Século XXI

21 Lições para o Século XXI por Yuval Noah Harai

Sempre que novos conhecimentos se transformam em tecnologias que podem implicar sérias mudanças económicos e sociais é importante refletir sobre esses avanços, evitar caminhos errados e aplicações indesejáveis. A inteligência artificial, a robótica e a biotecnologia são grandes avanços da ciência que começam agora a gerar impactos na economia e na sociedade. Mas não são os únicos.

Nestas encruzilhadas históricas existem sempre os “velhos do Restelo” prontos a imaginar cenários catastróficos apelando ao regresso à tradição e à contenção. Esse é o papel que assume Harari neste livro.

Misturando verdades científicas com ficção, meditação com reflexão, prudência com paralisação, análise com preconceitos ideológicos, o autor não consegue estruturar uma mensagem que não seja de medo perante a mudança.

É certo que as tecnologias referidas podem ser usadas como instrumentos de poder, como ferramentas de dominação, como formas de exploração, mas isso sempre aconteceu com praticamente todos os avanços humanos.

Não percebendo que o valor advém do trabalho imagina um mundo em que a maioria da população é inútil e, portanto, supérflua, podendo ser deixada para trás ou mesmo eliminada. Malthus no século XVIII tinha também esta visão devastadora do progresso e do aumento populacional – os factos encarregaram-se de o desmentir em toda a linha.

Nos últimos 70 anos a evolução científica e tecnologia tem sido avassaladora, as máquinas permitiram grandes aumentos de produtividade, a população mundial multiplicou-se mas a percentagem da população com trabalho, com pequenas oscilações em torno de crises, tem-se mantido constante. O número de empregos gerados tem sido proporcional ao aumento de população apesar do grande acréscimo de pessoas.

A robótica, a inteligência artificial e a biotecnologia podem mudar o perfil produtivo dos países, vão aumentar enormemente a produtividade, vão alterar muitas das relações sociais a que estamos acostumados, mas não podem alterar a lei do valor, isto é que o valor de troca dos produtos advém do trabalho incorporado. E não podem alterar o sistema capitalista que visa a apropriação da mais-valia por uma pequena elite dona dos meios de produção. Estes factos devem tranquilizar-nos face a cenários catastróficos de alcance mundial, mas alertam-nos para o intensificar da exploração.

Que estes avanços técnicos sejam usados para aumentar o controlo social é bem evidente já hoje com a utilização de algoritmos e da inteligência artificial para moldar os espíritos e inculcar a ideologia dominante. Estes efeitos têm de ser percebidos, denunciados e combatidos.

Um livro que partindo de problemas reais, pela ausência de uma metodologia científica, acaba por se perder em reflexões pueris, antevendo cenários calamitosos, embarcando em ideologias retrogradas, misturando o real com o imaginário, o certo com o errado.

O livro tem o mérito de levantar problemas sérios e atuais e de nos alertar para alguns perigos das tecnologias emergentes.