O Chinês da Dor por Peter Handke
Os sentidos despertos, alerta, conscientes e
fotográficos. Um olhar minucioso, detalhado, clínico sobre a realidade, sobre
as cores e as formas e as suas subtis conjugações e variações. O cheiro apurado para os
odores que nos rodeiam. Uma audição atenta os sons, ruídos e vibrações do
ambiente.
As sensações que mudam com o estado de espírito do individuo, com a depressão, a alegria, a antecipação do amor, ou
simplesmente com a tranquilidade quotidiana. Como se toda a natureza mudasse
connosco, com o nosso humor, as cores mudando de tonalidade,
os sons de intensidade e significado, as formas de configuração, os cheios de fragrância.
O mundo, o pequeno mundo dos arredores de
Salzburg, visto por um personagem enigmático, que se confronta com uma ação
impulsiva que origina estados de alma diferentes no percurso que a explica e à
medida a que com ela se conforma.
Um livro sobre a soleira, esse território que
separa o interior do exterior, mas que não sendo uma fronteira é o terreno da
mediação, “um lugar de prova ou de proteção”. “Na palavra soleira existe mudança, marés, vau, sela, zona. “A soleira é a fonte” diz um ditado quase
esquecido”. E quase no final “«O
narrador é a soleira. Por isso ele tem de parar e recompor-se»”.
Um livro abundante de temas como o divórcio “Nunca pergunto. Já antes eu fazia poucas
perguntas. Talvez tenha sido isso que levou à separação. O meu problema é
muitas vezes não ser capaz de fazer perguntas. No entanto, eu próprio sou constituído
por perguntas”, o da identidade “O
meu lugar não foi sempre na engrenagem em que ninguém se diferencia de ninguém”,
o do racismo “Disse que andava numa
escola primária em que havia uma turma especial para estrangeiros que se
chamava “turma colorida”: não devido aos lápis de cor que eram quase os únicos
instrumentos de ensino, mas devido às diversas cores da pele”, o
ressurgimento do nazismo “cruzes
suásticas? Vêem-se, e não só aqui, por todo o lado” e tantos outros.
Um pequeno trecho “água, sem objetos, sem animais, o elemento puro; ora límpido ora turvo;
branco como as bétulas, amarelo como o céu, cinzento como a rocha,
cor-de-carne, cor das nuvens, azul como ferro, verde como relva, negro como a
turfa, negro como um poço, completamente silencioso; só onde pende um remo – ou
numa passagem estreita- se ouve um gargarejo, como numa fonte escondida”. Genial.
Peter Handke (n. 1942) ganhou o Prémio Nobel
deste ano. Absolutamente merecido.