quarta-feira, 18 de abril de 2018

Gosto disto Aqui

Gosto disto aqui por Kingsley Amis

Nos anos 1950 um escritor da Grã-Bretanha descobre Lisboa no decurso de uma estadia destinada a inspirar-se nos costumes locais e a aferir a veracidade da identidade de um conterrâneo.

O nosso herói, um xenófobo que detesta o estrangeiro de que só teve uma breve experiência ao serviço do exército, acaba por ser empurrado para esta vigem a Portugal pela mulher, pela sogra e pela perspetiva de um emprego fixo bem remunerado.

Chega a Portugal de barco, trazendo o carro, acompanhado da mulher e dos três filhos pequenos, cumpre a sua missão no meio de dúvidas existências pelo papel de espião-coscuvilheiro e regressa feliz para o seu país onde gosta efetivamente de viver.

Em Portugal encontra um país dominado por Salazar, de costumes estranhos “E por que é que põem azeite em tudo?”, com uma culinária limitada “aqui as pessoas comem muitas sardinhas”, praticando uma religiosidade exacerbada que descobre através de uma “expedição a Fátima, onde tinham decorrido as festividades religiosas” e de uma pobreza por vezes chocante “barqueiro desdentado”.

Nessa época Amis confronta-se com um país em que existe uma censura feroz mesmo sobre questões menores como um acidente ferroviário “Só um jornalista deu essa notícia imagino que poe descuido. Os nossos valentes polícias foram lá e encerraram o jornal” e incapaz de construir as suas próprias infraestruturas “Aquela bela estrada nova, a leste de Lisboa, que conduz a Évora e Espanha – é uma estrada americana. Destina-se a abastecer os exércitos da NATO em Espanha”.

E que dizer das elites económicas que depois de obter fortuna se limitam “a gastá-la com o maior espalhafato possível, enchendo a mulher e a amante de diamantes e peles”, um grupo social composto de pessoas que “só trazem vergonha e ruína”.

Um regime caracterizado pela “presença de oficiais de Himmler e a ausência de partidos políticos” e por uma imensa corrupção.

Com uma escrita escorreita e leve, um sentido de humor inteligente e subtil, este livro de cariz autobiográfico retrata um Portugal provinciano que levam o herói a regressar alegremente ao seu país e a proclamar quando aí chegou “Gosto disto aqui” como contraponto à experiência vivida em Lisboa e arredores.

Kingsley Amis é considerado um dos melhores escritores de língua inglesa da segunda metade do século XX.

quarta-feira, 11 de abril de 2018

Eutanásia: A Perspetiva do Psiquiatra

Eutanásia: A Perspetiva do Psiquiatra por Adriano Vaz Serra

Esta palestra proferida pelo Professor Adriano Vaz Serra, Catedrático de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, foi publicada em 1993 pela Academia das Ciências de Lisboa por ocasião do II Centenário desta instituição.

Uma análise distanciada e multifacetada da questão da eutanásia. Numa breve retrospetiva histórica refere a sua prática em Portugal entre a comunidade judaica através de uma figura controversa, o abafador, que apressava a morte dos doentes para que estes não pudessem confessar-se nem denunciar os restantes membros da comunidade. Esta prática é retratada num conto de Miguel Torga intitulado Alma Grande.

O termo eutanásia foi criado por Francis Bacon no século XVIII” numa obra em que defendia esta solução para os doentes incuráveis. Hoje, naturalmente, muitos doentes incuráveis, como os portadores de HIV e outras doenças, vivem longos anos graças à medicação e às várias terapias.

Nos argumentos que lista contra a eutanásia enfatiza os casos de pessoas que depois de serem dadas como terminais pelos médicos se curaram e viveram muitos anos. Refere também que “Uma vez legalizada é difícil precisar os limites” e pergunta “Que meios há, rigorosos, que possam pôr a salvo as pessoas?”.

Refere igualmente que um “inquérito dirigido a residentes de casas para idosos, na Holanda, verificou que a grande maioria se manifestou com medo da eutanásia involuntária”.

Um excelente texto que nos permite refletir sobre tão importante e vital tema para todos nós.

quarta-feira, 4 de abril de 2018

O outro pé da sereia


O outro pé da sereia de Mia Couto

Com um estilo muito próprio, próximo do realismo mágico, com uma prosa onírica, inventando um novo e rico vocabulário assente em variações linguísticas baseadas em trocadilhos intencionais e certeiros, Mia Couto alcançou nos anos de 1990 o estatuto de principal e mais mediático escritor moçambicano com obras como Terra Sonâmbula, Mar me quer, Vinte Zinco e outras.

O outro pé da Sereia é uma obra mais recente, de 2006, surgida já depois do autor receber importantes prémios como o Prémio dos Escritores Moçambicanos (1995) e o Prémio Virgílio Ferreira (1999).

Como nas obras anteriores Mia inventa expressões de forma esfuziante e muito criativa: “pela escalada da noite”, “palma da minha mãe”, “vai de animal a pior”, “não tenho onde cair torto”, “escrevia torto onde não havia linhas”, “antes à tarde que nunca”, “erros desortográficos”, “diga-se de paisagem” e outras.

Interessantes são também as reflexões profundas e certeiras sobre um conjunto de temas laterais à narrativa como os filhos “só temos como nossos os filhos que são infelizes. Os outros, os que gozam de felicidade acabam se afastando em suave dança com Vida”, a propaganda política “quando se inventam assim maldades sobre um povo, é para abençoar as maldades que se vão praticar sobre ele”, a viagem que “não começa quando se percorrem distâncias, mas quando se atravessam as nossas fronteiras interiores”, a casa “as pessoas é que abrigam a casa, a ternura é que sustenta o teto”.

Trata-se de um livro muito controverso, muito assertivo em ideias francamente duvidosas e estranhas.

No livro um afro-americano visita Moçambique na busca das suas raízes mas é rechaçado pelos locais com duas ideias base: i) a escravatura de que têm memória foi perpetrada por outros povos negros tendo os portugueses ajudado a combate-la; ii) o concelho de que deve deixar de se afirmar como afro-americano para se assumir somente como americano.

Ambas as ideias são profundamente perturbadoras. A segunda surge bem expressa “Têm que lutar para serem americanos. Não afro-americanos. Americanos por inteiro”. Discordamos por completo. A identidade de um povo não deve ser diluída na cultura de terceiros, muito menos da nos que os oprimiram durante séculos. Esquecer as origens, a escravatura, a luta pelos direitos civis é o lamentável concelho que Mia oferece. Deveriam os moçambicanos ter-se tornando “portugueses” durante a ocupação colonial? Devia ter sido esse o seu objetivo? Deve o oprimido querer tornar-se no opressor?

A primeira ideia fica clara quando escreve “Esses negros vieram do Sul e nos escravizaram, nos capturaram e venderam e mataram. Os portugueses, numa certa, altura, até nos ajudaram a lutar contra eles …”. Torna-se penoso ler esta frase. Portugal lutando contra a escravatura em África!! Portugal o país que mais escravos comercializou de África para as Américas, especialistas apontam para entre 4 a 5 milhões de pessoas, Portugal o país que manteve o comércio de seres humanos mesmo depois de ser proibido internacionalmente. É um total branqueamento da terrível realidade histórica portuguesa.

Estas são as duas ideias base do romance que se vai construindo no contraponto, que alguns chamam de alteridade, entre os afro-americanos, um dos Estados Unidos e outra do Brasil, e os negros africanos. 

Em resumo, um livro muito controverso com ideias profundamente chocantes e algumas mesmo erradas que desvirtuam a realidade histórica.