quarta-feira, 28 de agosto de 2019

Se numa noite de inverno um viajante

Se numa noite de Inverno um viajante por Italo Calvino

Um livro a um tempo estranho, refletido e luminoso que nos apresenta como personagens essenciais e surpreendentes o Leitor e a Leitora.

Estranho, pela mistura de géneros, pela trama, pela forma intrincada como é apresentado. No interior de um romance encontramos o ensaio, o conto, embarcamos num saga ao estilo policial, percorremos labirintos, entramos numa distopia, e rumamos a uma reflexão profunda sobre a escrita vista de múltiplos ângulos, do escritor ao leitor. A trama que se urde relativamente linear quando deslindada no final mas labiríntica e intrigante no inicio.

O livro é tributário em largas passagens de Jorge Luís Borges de que nos chegam fortes ecos nomeadamente no capitulo intitulado Numa rede de linhas que se intersectam. A ideia do todo contido num ponto tão cara a Borges surge em passagens como “concentrando os raios, os espelhos curvos podem captar uma do todo”. O tema do encontro do passado e do presente e da sua interligação e comunicação presente no autor argentino surge aqui no conto À volta de uma cova vazia, curiosamente passado na América Latina num ambiente que nos recorda também o realismo mágico de Juan Rulfo. Outros autores são também convocados e os seus estilos e temáticas aludidas.

Refletido porque contém diversas secções de cariz ensaístico sobre a escrita, a elusiva fonte de inspiração do escritor, o papel do Leitor e as múltiplas formas de assumir esse papel essencial. Será o Escritor um mero fingidor, retomando o mote de Fernando Pessoa, ou pelo contrário um genuíno e sincero tradutor do ainda não-dito para a linguagem dos homens.

Um excelente livro sobre a própria Literatura.

terça-feira, 6 de agosto de 2019

É nosso o solo sagrado da Terra

É nosso o solo sagrado da Terra de Alda do Espírito Santo

Poesia de afirmação de um povo, de uma cultura, de uma revolução em marcha.

Por vezes panfletária, por literalmente direta, por vezes elevando-se no plano literário, Alda do Espírito Santo faz neste livro uma poesia necessária, uma poesia de memória, de luta e de afirmação, uma poesia militante, de mensagem politica revolucionária.

O homem luta de pé

Pela vitória final.

Mas para muitos a luta não começou ainda

As cabeças afocinhadas no fundo

    Dos seus tugúrios

Sem poderem avançar sequer um passo

Dormem passivos

Na passividade morta do desespero.

As ilhas do equador, o cacau, os angolares, os bairros pobres, a mata, as crianças, os pescadores que enfrentam o gandú, o colonialismo e a miséria temas que aqui podemos encontrar. Sempre com um amor profundo pelo seu povo e a sua terra.

A vida dura das mulheres assume também um papel central na poesia de Alda do Espírito Santo.



Alda do Espirito Santo (1926-2010), santomense, poetisa, militante anticolonial, depois da independência ocupou várias pastas ministeriais no seu país nomeadamente a da Educação e Cultura.

Histórias de Cronópios e Famas

Histórias de Cronópios e Famas de Julio Cortázar

Pequenos e estranhos textos de tons surrealistas agrupados em quatro conjuntos distintos.

O primeiro grupo intitulado Manual de Instruções contém indicações sucintas mas sempre muito precisas e exatas sobre como desempenhar algumas tarefas tão diversas como cantar, chorar ou subir uma escada, esta última mais complexa de ensinar dada “a coincidência de nomes entre o pé e o pé” que “torna a explicação difícil”.

A segunda parte sob a designação Ocupações Raras descreve ocupações pouco usuais como Caçar o Jaguar ou desempenhadas de forma inusitada como Comportamento em Velórios ou nos Correios e Telecomunicações, ou ainda idiossincrasias familiares como em Tia em Dificuldades. A abordagem é clara e maravilhosamente encapsulada na frase “A fim de lutar contra o pragmatismo e contra a horrível tendência de prosseguir fins úteis…”.

Essa é uma ideia que perpassa em todo o livro, a fuga ao repetitivo, ao constante, ao aborrecido quotidiano e a procura do inventivo inútil, da agradável, do único, do imaginativo.  

Em Material Plástico encontram-se os melhores textos os mais marcadamente inovador que fere e encanta – “O verdadeiramente novo faz medo ou maravilha. Estas duas sensações igualmente próximas do estômago acompanham sempre a presença de Prometeu: o resto é comodidade, o que sai mais ou menos bem; os verbos ativos contêm o reportório completo”.

Finalmente em Histórias de Cronópios e Famas, quarta e última parte do livro, são-nos apresentados três caracteres diferentes: os cronópios, os famas e os esperanças. A humanidade assim classificada. A melhor definição destes tipos humanos está no texto Viagens – “Quando os cronópios vão de viagem, encontram os hotéis cheios, os comboios já partiram, chove a potes, os táxis não os querem levar ou pedem imenso dinheiro. Os cronópios não desanimam, pois julgam que isto acontece a toda a gente e, quando se vão deitar, dizem uns para os outros «Bela cidade, belíssima cidade» ”.

Um grande livro.

Julio Cotázar (1914-1984), argentino, tradutor e escritor viveu boa parte da sua vida na Europa.