quarta-feira, 27 de setembro de 2017

A Dádiva


A Dádiva por Toni Morrison

Nos finais do século XVII quando a América começava a ser colonizada pelos europeus, quando os primeiros escravos chegavam de África, quando os índios ainda viviam nas suas terras, quando a multidão que haveria muito mais tarde de criar um país ainda se misturava de forma caótica formando uma sociedade incipiente em que a Lei não predominava e as religiões rivalizam, um português de nome espanhol tem de saldar as suas dívidas e uma mãe faz um sacrifício supremo para defender os filhos, uma escolha dolorosa mas acertada.

Uma quinta de difícil sustentação gerida por um homem e quatro mulheres formam um quinteto improvável, espelho da sociedade, que procura encontrar a sua nesga de liberdade e felicidade, num mundo agreste, de costumes bárbaros, natureza bravia e doenças mortais.

Todas as personagens carregam o pesado fardo de um passado doloroso, cunhado pela adversidade, pelo trauma e pela esperança. Como ultrapassar essa marca original? Como sarar essas lesões profundadas da alma? Cada uma à sua maneira vai responder a este quesito sem que nenhuma delas consiga um apaziguamento completo e definitivo.

De diversas proveniências todos confluem, de forma violenta, como um embate telúrico, para criar uma nova realidade mais feia e crua do que a anterior.

Quantas faces tem a escravatura? Pode alguém sendo livre ser simultaneamente escravo de outrem? Como compreender atitudes não explicadas? Como perceber a atitude de uma mãe que procura salvar os filhos face aos perigos de um mundo impiedoso.

Uma escrita poética, uma cronologia de acontecimentos enredada na complexa memória humana, uma história de sobrevivência física e psicológica, de fortaleza moral e humana. Um final forte, claro, inesperado e comovente.

Toni Morrisson (n. 1931) foi a primeira mulher negra norte-americana a ganhar o Prémio Nobel da Literatura que lhe foi atribuído em 1993. Só este livro já valia o Prémio.

quarta-feira, 20 de setembro de 2017

Sociedades de Transição: Luta de Classes e Ideologia Proletária


Sociedades de Transição: Luta de Classes e Ideologia Proletária 
por Paul Sweezy e Charles Bettelheim

Este livro dá à estampa a troca de correspondência mantida nos finais dos anos 60 do século XX entre Paul Sweezy e Charles Bettelheim a propósito da invasão da Checoslováquia pelas tropas do Pacto de Varsóvia e que se transformou num interessante debate sobre as sociedades de transição entre o capitalismo e o comunismo, a luta de classes que se mantêm nesse período e os riscos do regresso ao capitalismo. Partindo de posições diferentes, pouco a pouco Sweezy aproxima-se das posições de Charles Bettelheim.

Um livro que ajuda a perceber o colapso da União Soviética e o fim do socialismo nos países de Leste. Os dois autores identificam claros indícios de uma deriva em prol do mercado nesses países e do recurso a um estilo autoritário nas relações entre o Estado e as classes populares. A crescente autonomia das administrações das empresas públicas ou mistas, a cada vez menor importância do plano na regulação económica, a crescente integração na economia global dominada pelo capitalismo, o omnipresente estímulo da produção através de incentivos materiais tudo indicava que esses países avançavam na direção da restauração do capitalismo.

Paul Sweezy parte de uma posição que considera a URSS e os países de Leste como dirigidos por uma burocracia que os levada no caminhando do regresso ao capitalismo e Charles Bettelheim, alinhado com as teses do Partido Comunista Chinês, defendia que esse passo já tinha sido dado e que esses países já eram capitalistas embora adotando provisoriamente um capitalismo de Estado.

Uma polémica claramente datada, inserida no conflito sino-soviético que dividiu o movimento comunista internacional, mas que pode ajudar a refletir sobre a atualidade.

Paul Sweezy (1910-2004) foi um dos mais importantes economistas marxistas dos Estados Unidos tendo criado e publicado a prestigiada Monthly Review uma revista de cariz académico de tendência socialista.

Clarles Bettelheim (1913-2006) foi um professor universitário francês fundador do Centre pour l'Étude des Modes d'Industrialisation nos Hautes Etudes en Sciences Sociales e um dos mais profundos historiadores ocidentais da revolução russa.

quarta-feira, 13 de setembro de 2017

Norte e Sul


Norte e Sul por Elizabeth Gaskell

A Inglaterra da primeira metade do século XIX dividida entre um Norte industrial e um Sul rural. Deslocada da zona meridional a família de um antigo pastor da Igreja Anglicana confronta-se com o novel sistema social do capitalismo, o espírito empreendedor, a azáfama dos negócios, o fumo das fábricas, mas também com a fome, a miséria, as doenças laborais, o desespero, as greves e o confronto social.

Perdida neste novo mundo, Margaret, a filha do ex-clérigo, reage como se estivesse em presença das antigas classes sociais, que prescreviam às classes superiores o desprezo pelo trabalho, compaixão pelos destituídos, boas maneiras, interesse pela literatura clássica e chá à hora certa.

Assim o capitalista, dono de fábricas e de fortuna é visto como inferior na medida em que trabalha e produz não se limitando a viver ocioso das suas rendas ou a gastar o seu tempo a estudar ou a praticar as artes liberais. Este tema vai ganhar corpo num interessante debate entre Margaret e Thornton sobre a diferença entre cavalheiro e homem.

Eivada de uma visão extremamente conservadora e religiosa a autora vê as classes trabalhadores como inferiores, o seu amor pelos filhos como uma “espécie animalesca de afeição”, incapazes de ordenar a sua própria casa sempre vista como “desmazelada” com maneiras rudes “ sentada numa cadeira de baloiço … descuidada”.

Assim não espanta que condene os sindicatos como “tiranos” ao mesmo tempo que prescreve o bom comportamento e o sofrimento em silêncio e na aceitação passiva das más condições de vida.

Critica, contudo, igualmente os capitalistas por considerarem os trabalhadores apenas como “mãos” e não como seres humanos, nem se preocuparem com a sua sorte. Defende pelo contrário um paternalismo cristão à maneira sulista que trate os pobres com dignidade e promova a caridade.

O livro tem características autobiográficas uma que que Elizabeth Gaskell (1810-1865) era ela própria filha de um ministro do culto unitarista, nasceu nos arredores de Londres mas viveu parte da sua vida em Manchester no seu tempo a cidade industrial por excelência.

Um estilo que lembra Jane Austen na atenção ao detalhe, nas descrições apuradas, no deslindar psicológico finamente rendilhado das personagens, na sensibilidade feminina, mas que dela se distância ao abordar temas abertamente sociais, religiosos e filosóficos do seu tempo.

Seguindo um percurso de argumento, contra-argumento e a síntese o livro argumenta com inteligência e analisa com argucia os vários tópicos. Em pano de fundo uma história de amor e de coragem.

Apesar de datado e marcadamente ideológico do ponto de vista conservador e religioso é, contudo, um livro em que a elevada qualidade da escrita e a temática desenvolvida tornam interessante.