quarta-feira, 4 de abril de 2018

O outro pé da sereia


O outro pé da sereia de Mia Couto

Com um estilo muito próprio, próximo do realismo mágico, com uma prosa onírica, inventando um novo e rico vocabulário assente em variações linguísticas baseadas em trocadilhos intencionais e certeiros, Mia Couto alcançou nos anos de 1990 o estatuto de principal e mais mediático escritor moçambicano com obras como Terra Sonâmbula, Mar me quer, Vinte Zinco e outras.

O outro pé da Sereia é uma obra mais recente, de 2006, surgida já depois do autor receber importantes prémios como o Prémio dos Escritores Moçambicanos (1995) e o Prémio Virgílio Ferreira (1999).

Como nas obras anteriores Mia inventa expressões de forma esfuziante e muito criativa: “pela escalada da noite”, “palma da minha mãe”, “vai de animal a pior”, “não tenho onde cair torto”, “escrevia torto onde não havia linhas”, “antes à tarde que nunca”, “erros desortográficos”, “diga-se de paisagem” e outras.

Interessantes são também as reflexões profundas e certeiras sobre um conjunto de temas laterais à narrativa como os filhos “só temos como nossos os filhos que são infelizes. Os outros, os que gozam de felicidade acabam se afastando em suave dança com Vida”, a propaganda política “quando se inventam assim maldades sobre um povo, é para abençoar as maldades que se vão praticar sobre ele”, a viagem que “não começa quando se percorrem distâncias, mas quando se atravessam as nossas fronteiras interiores”, a casa “as pessoas é que abrigam a casa, a ternura é que sustenta o teto”.

Trata-se de um livro muito controverso, muito assertivo em ideias francamente duvidosas e estranhas.

No livro um afro-americano visita Moçambique na busca das suas raízes mas é rechaçado pelos locais com duas ideias base: i) a escravatura de que têm memória foi perpetrada por outros povos negros tendo os portugueses ajudado a combate-la; ii) o concelho de que deve deixar de se afirmar como afro-americano para se assumir somente como americano.

Ambas as ideias são profundamente perturbadoras. A segunda surge bem expressa “Têm que lutar para serem americanos. Não afro-americanos. Americanos por inteiro”. Discordamos por completo. A identidade de um povo não deve ser diluída na cultura de terceiros, muito menos da nos que os oprimiram durante séculos. Esquecer as origens, a escravatura, a luta pelos direitos civis é o lamentável concelho que Mia oferece. Deveriam os moçambicanos ter-se tornando “portugueses” durante a ocupação colonial? Devia ter sido esse o seu objetivo? Deve o oprimido querer tornar-se no opressor?

A primeira ideia fica clara quando escreve “Esses negros vieram do Sul e nos escravizaram, nos capturaram e venderam e mataram. Os portugueses, numa certa, altura, até nos ajudaram a lutar contra eles …”. Torna-se penoso ler esta frase. Portugal lutando contra a escravatura em África!! Portugal o país que mais escravos comercializou de África para as Américas, especialistas apontam para entre 4 a 5 milhões de pessoas, Portugal o país que manteve o comércio de seres humanos mesmo depois de ser proibido internacionalmente. É um total branqueamento da terrível realidade histórica portuguesa.

Estas são as duas ideias base do romance que se vai construindo no contraponto, que alguns chamam de alteridade, entre os afro-americanos, um dos Estados Unidos e outra do Brasil, e os negros africanos. 

Em resumo, um livro muito controverso com ideias profundamente chocantes e algumas mesmo erradas que desvirtuam a realidade histórica.



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