Terra sonâmbula de Mia Couto
Os efeitos devastadores, físicos e morais da
guerra neocolonial em Moçambique aqui descritos e contados. Não de forma direta
e realista mas efabulada, metaforizada, sem perder o conteúdo dramático e
pungente do tema.
As comunicações, estradas, caminhos-de-ferro,
cortadas impedem o abastecimento, a fome instala-se. As incursões de homens
armados que violam e matam empurram as populações rurais a procurar refúgio
noutras paragens.
Nascem os campos de refugiados, as famílias
separam-se, desagregam-se, pessoas erram sem destino pelas paisagens poeirentas,
a esperança dá lugar ao cansaço, ao desânimo, ao desalento, à vontade de lenta
e docemente se fundir com a terra, de desaparecer no oceano, de fugir da
realidade.
Neste ambiente de sofrimento e morte as
pessoas refugiam-se no sonho, no mito, cresce uma atmosfera de dupla e febril irrealidade
– o pesadelo persistente, duradoiro e desertificador da guerra e sonho interior
com que cada individuo reage à dura e estranha realidade em que está
mergulhado.
É neste mundo simultaneamente desumano e
mortalmente real por um lado e doce e humanamente irreal por outro que as
personagens se movem, angustiados, numa busca incessante e sempre insatisfeita.
A escrita de Mia Couto segue um padrão
inovador e imaginativo ajustando a linguagem aos personagens, à atmosfera que
pretende criar, à cultura local do seu país.
Muitas palavras novas, criadas pelo autor,
introduzidas em catadupa no português erudito, cujo sentido é de perceção
imediata, que clarificam ideias, que fundem conceitos e ultrapassam
dificuldades de comunicação de forma simples, bela e eficaz.
Como se não deliciar com “veementindo” (mentir
veementemente) ou com “mancha-prazeres”, “contrabandalheiras”, “malvoroço” (alvoroço
negativo), “anjonautas”, “redemoniaca” (remoinho demoníaco), “desconseguir”, “pensageiro”,
“acrediteísta”, “cadeira rodoviária”, “berrafustar”, etc., etc.? É verdadeiramente
de uma imaginação delirante.
As expressões e imagens novas também abundam.
Veja-se “num estrelar de olhos”, “comidas bem cheias, dessas dos olhos
salivarem na língua”, “vida estar a correr as mil porcarias”, “a memória não
lhe tinha chegado aos olhos”, “nem temos onde cair vivos”,
Frases que nos fazem pensar: “nasci num tempo
em que o tempo não acontece”, “ A dor, afinal, é uma janela por onde a morte
nos espreita”, “A felicidade é uma coisa que os poderosos criaram para ilusão
dos pobres”, “a escuridão nos faz nascer muitas cabeças”, “tinha de haver
guerra, tinha que haver morte. E tudo para quê? Para autorizar o roubo”, “um
sonâmbulo passeando entre o fogo”, “um coxo faz inveja a um paralítico”, “A
riqueza é como o sal: só serve para temperar”, “em terra de cego quem tem um
olho fica sem ele”, “o melhor da vida é o que não há de vir” e tantas outras.
Abre novos caminhos à Literatura em língua
portuguesa. Ficará como marco de um novo e empolgante estilo literário.
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