sábado, 11 de julho de 2009

Trilogia Suja de Havana



A publicação de um autor como Pedro Juan Gutierrez em Cuba é uma mostra que nesse país a liberdade de expressão não é, como muitas vezes se repete, letra totalmente morta. Claramente este não é um livro de exaltação das virtudes do socialismo fidelista. Aliás este não é um livro de exaltação de virtudes, antes de exposição e assunção despudorada de múltiplos e variados defeitos morais e éticos.

A arte vista por Pedro Juan Gutiérrez

Não me interessa o decorativo, nem o bonito, nem o doce, nem o delicioso ... A Arte só serve para alguma coisa se for irreverente, atormentada, cheia de pesadelos e de desespero. Só uma arte irritada, indecente, violenta, grosseira, pode mostrar-nos a outra face do mundo, a que nunca vemos ou nunca queremos ver para evitar incómodos à nossa consciência.” (página 105)

Pedro Juan mostra-nos uma “outra face do mundo”, a face do esquema, do trafego, do crime, da miséria moral, da falta de escrúpulos, a face de uma fauna que gostamos de pensar que está solidamente atrás das grades e não nas ruas das nossas cidades.

Pedro Juan Gutiérrez inscreve-se num movimento literário mais amplo de que ele é apenas um autor tardio e algo periférico: o realismo sórdido, dirty realism na expressão cunhada para Charles Bukowski (1920-1994). A influência de Bukowski é bem notória, chegando a identificação ao ponto de o personagem da Trilogia ter sido casado com uma escultora, emulando a relação de Charles Bukowski com Linda King. Como Bukowski, Pedro Juan descreve uma perfusão de ligações amorosas numa linguagem gráfica que raia o pornográfico e que lhe servem de inspiração, tema ou pano de fundo dos seus contos curtos.

Assumir uma moral desviante e marginal

Pedro Juan Gutiérrez escreve na primeira pessoa. A este “eu” do narrador acresce um nome Pedro Juan – exactamente o seu. Não quer deixar espaço a qualquer distanciação do autor em relação ao personagem. Quer assumir por inteiro a atitudes, postura, a conduta que descreve.

Uma ética repelente, viciosa, desviante e marginal.

A recusa do trabalho sério e a preferência pelo marginalidade, “Ao fim de um ano de recolha de lixo, larguei esse trabalho. Era duro demais. E de madrugada. Pagavam bem, mas não valia a pena. Com um negociozito qualquer, consigo o mesmo dinheiro, e mais, num só dia.” (pagina 263), que levam directamente às actividades mais escabrosas, “Depois dediquei-me a uma coisa mais fácil e que dá mais dinheiro. Dei em gigolo. Mas com as velhas. Com as turistas.” (página 224). Naturalmente que em qualquer sociedade civilizada este tipo de escolhas propiciam visitas, mais ou menos prolongadas, à cadeia, uma experiência que lhe permitiu descobrir que “Na prisão não há amigos” (página 222).

A vida que escolhe deixa-o, naturalmente, insatisfeito “Uma pessoa está cheia de fúria e de raiva e precisa descontrair. Todos sabemos como: álcool, sexo, drogas”. (página 221). E de facto o rum, as mulheres de má vida e a marijuana são presenças permanentes na vida de Pedro Juan.

Para manter esses vícios recorre a todos os meios, sem bem que com consciência plena da miséria em que se afunda. Note-se a auto-ironia da última frase. “Uma tarde agarrei Luisa com a maior das naturalidades e disse-lhe «Ouve lá, chega de não fazer nada e passar fome. Gira para o Malecón e toca a engatar!» E foi uma boa decisão. Esta mulata tem semanas que faz trezentos dólares. Irra! Basta de miséria!” (página 202).

E como todo o marginal queixa-se dos outros para justificar a falta de dignidade própria “Mas a pobreza tem muitas caras. A sua cara mais visível é talvez a capacidade que tem de nos despojar da grandeza de espirito. Ou pelo menos da largueza de espirito. Concerte-nos em tipos ruins, miseráveis, calculistas. A única necessidade é sobreviver. E p´ro caraças com a generosidade, a solidariedade, a amabilidade e o pacifismo” (página 153). Soa bem mas não é verdade. Onde medraram as ideias de generosidade, de solidariedade e de justiça senão junto dos pobres?

Racismo

Múltiplas são as alusões racistas nesta obra. Os negros são sistematicamente apelidados de porcos, sujos, brutos e agressivos. As mulatas de ninfomaníacas. E claramente uma das formas que Pedro Juan deliberadamente usa para chocar, para se exibir chafurdando orgulhosamente na miséria moral é a descrição das suas ligações sexuais com negras e mulatas. Como se descreve-se relações com animais.

Política

Há três níveis de leituras políticas desta obra. A directa – há crime, privações materiais e miséria moral em Cuba e isso é culpa do regime.

A indirecta – o crime, a marginalidade, o vicio simplesmente existe em qualquer sociedade. E que é um dos direitos do Homem poder rebolar-se na porcaria Uma liberdade a preservar. Recorde-se que Pedro Juan, escolhe livremente este tipo de vida. Num dos contos um cubano emigrante na Alemanha volta de férias a Cuba com a mulher alemã e os filhos comuns. E o que faz? Aloja-se num bairro sujo e degradado e corre a embebedar-se de rum e a procurar mulheres da vida. Nesse sentido Cuba é a pátria de uma certa liberdade debochada que não encontra numa Alemanha mais civilizada.

E uma terceira em que o leitor suspeita que em Cuba a polícia não actua com a dureza que se impõe e que a liberdade se estende para além do que é aceitável, como no abominável caso em que um trabalhador da morgue retirava o fígado dos mortos e o vendia aos vizinhos como fígado de porco.





Para saber mais sobre Pedro Juan Gutiérrez:
http://www.pedrojuangutierrez.com/Biografia_portugues.htm

Para saber mais sobre Charles Bukowski:
http://bukowski.net/

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