quarta-feira, 29 de agosto de 2018

Um dia e uma noite

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Um dia e uma noite de Jean Sanitas

Jean Sanitas conta-nos episódios verídicos da Resistência francesa à ocupação alemã durante a II Grande Guerra em que avultam a coragem, a determinação e o sacrifício da vida pela causa.

Central a toda a narração é a sua própria prisão aos 16 anos juntamente com o pai e os irmãos e a barbara tortura a que todos foram sujeitos.

Os detalhes dos espancamentos, das queimaduras com pontas acesas de cigarros, do mergulho da cabeça em água tépida são extraordinários testemunhos da sua experiência física e psicológica. À crescente crueldade dos métodos de tortura ergue-se a forte determinação de nada dizer, de não trair a família nem os camaradas de armas.

Um livro de memórias que intercala histórias e detalhes da resistência e nos apresenta através de uma escrita cuidada e de grande qualidade toda uma panóplia de personagens comuns que num momento decisivo da história do seu país assumem a sua missão com dignidade e coragem – “Não nasceu e viveu para chegar ali e desempenhar certa quinta-feira, entre paredes opressivas de uma prisão, nos confins da provincia francesa, aquele papel importante, um desses papeis que de séculos a séculos contribuem para fazer do homem um homem e que pouco a pouco farão dele outro homem? Sim veio do infinito dos tempos pretéritos, através de uma longa linhagem de antepassados para trazer essa contribuição à laboriosa metamorfose da Humanidade”.

Não o fazem para defender uma ideia abstrata mas as liberdades e o futuro. “Não é o «solo sagrado da Pátria» que tenho consciência de defender, mas sim a liberdade, as liberdades, como por exemplo a de dizer mal do presidente da República…” e mais atrás “o que conta não é a Pátria, é o Homem”.

Os membros da resistência, uma mescla social de operários, intelectuais e desportistas – temos inclusivamente um campeão de automobilismo – são reais e as suas identidades e destinos apresentados em adenda no final da obra. Eis um deles “Esse domínio de si mesmo, quase absoluto, é fruto de uma longa maturação, obtida à força de enfrentar dificuldades e de querer. «As pancadas quebram o vidro e temperam o aço» escreveu o poeta. E só Deus sabe quantas pancadas recebeu Lenoir ao longo da sua atormentada experiência. Operário fabril no tempo em que se chamava Bac, conheceu o trabalho forçado da produção em serie; militante comunista sofreu a repressão do patronato e da Justiça às suas ordens. Foi posto na rua ou metido na prisão. Algumas vezes a cadeia seguiu-se ao despedimento. Sentiu nas costas por mais de uma vez os bastões brancos dos chuis e as bengalas ferradas dos camelots do rei. Passou pela alegria das greves e pela amargura das manifestações falhadas. A pobreza foi sempre a sua companheira, uma companheira temível e ardente da qual aprendeu a ser digno. Em resumo não era de vidro e por isso adquiriu boa têmpera”.

Jean Sanitas (1927-2016) foi um herói da resistência, um excecional jornalista e repórter, um escritor, um argumentista de banda desenhada. Uma vida plurifacetada sempre em luta pelo seu ideal comunista. Um autor desconhecido em Portugal que urge conhecer melhor.

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