quarta-feira, 24 de outubro de 2018

Vida e Morte de João Cabafume


Vida e Morte de João Cabafume por Gabriel Mariano

Uma coletânea de nove contos geograficamente espraiados por um triângulo com vértices em São Vicente, São Nicolau e Lisboa e temporalmente delimitados nas décadas de 40 e 50 do século passado, num tempo em que o colonialismo dominava cruelmente Cabo Verde com o seu cortejo de emigração forçada para as roças de São Tomé e de criminoso abandono das populações à fome e à morte em anos de seca.  

Ti Lobo, é um murro no estômago que nos confronta com o sofrimento e a morte de crianças sem que o Governo intervenha importando e distribuindo comida e evitando o desastre. Começa situando a ação no território da fome e da desgraça –“ Um dia, tinha nessa altura doze anos, João sentiu fome, Os pais, as outras pessoas também sentiram fome. Os pais, as outras pessoas, todo o mundo nas Queimadas sentiu fome. Os homens começaram por vender as mobílias. Depois arrancaram as fechaduras e os batentes das portas e venderam. Aqueles que tinham casas cobertas trocaram as telhas por comida. As terras também foram vendidas”. Uma desgraça que avança lentamente e que, como não combatida, vai começar a levar os socialmente mais frágeis.

O Rapaz Doente ou a Conjura trata com coragem de um tema duro: a doença mais mortífera e transmissível e os medos que gerava. A tuberculose não era tratável em Cabo Verde nesta época e até o Hospital se recusava a receber doentes com medo da contaminação dos restantes pacientes. Note-se contudo que em 1946 com a introdução da Estreptomicina a doença estava controlada na Europa. Naturalmente que o Governo colonialista português não fez chegar a Cabo Verde estes medicamente senão muitos anos depois.

Vida e Morte de João Cabafume rompe com a ideia de fado, destino, de submissão do ser humano a forças mais fortes da natureza ou da natureza da sociedade. João Cabafume não se verga, luta, enfrenta tudo e todos, obstina-se em construir o seu próprio destino. Cabafume rebela-se contra a Igreja – “Gentes, eu gostaria de saber uma coisa: porque é que pobre vai à igreja, reza quando deita e nunca sai da pobreza?”, contra a autoridade do Senhor Administrador, contra as injustiças do patrão.

Caduca é a história de um rocegador que procura pequenos pedaços de carvão para vender. Um homem livre “dono de todos os seus passos”, vivendo na praia junto do mar, mas capaz de uma crítica social mordaz, profunda e verdadeira “Como é que tendo todo o mundo de comer peixe, pescador nunca sai da miséria? E as carregadeiras do cais? Saco não tem pé. Carregadeira é que tem de botar no cachaço e carregar pró armazém. Como é então que carregadeira é tão pobre que nem pode morrer?

A par destes contos com forte cariz social encontramos outros mais íntimos em que a placidez da vida familiar assume lugar central e em que a vida social, com as suas intrincadas modulações, nos é descrita com mestria.

Gabriel Mariano (1928-2002), figura cimeira da geração da Nova Largada, a primeira corrente literária cabo-verdiana a abraçar decididamente a causa da independência, juiz de profissão foi perseguido pela PIDE, afastado da sua pátria, tem uma obra repartida pela poesia, pelo ensaio e a literatura. Escreveu repartidamente em português e em língua cabo-verdiana. Um forte cunho social, uma forte sensibilidade humana, a par com uma qualidade literária ímpar tornam-no uma das maiores referências intelectuais do seu país e um dos grandes contistas e poetas de língua portuguesa.

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