Vida e Morte de João Cabafume por
Gabriel Mariano
Uma coletânea de nove contos geograficamente espraiados
por um triângulo com vértices em São Vicente, São Nicolau e Lisboa e
temporalmente delimitados nas décadas de 40 e 50 do século passado, num tempo
em que o colonialismo dominava cruelmente Cabo Verde com o seu cortejo de
emigração forçada para as roças de São Tomé e de criminoso abandono das
populações à fome e à morte em anos de seca.
Ti Lobo, é um murro no estômago que nos
confronta com o sofrimento e a morte de crianças sem que o Governo intervenha importando
e distribuindo comida e evitando o desastre. Começa situando a ação no
território da fome e da desgraça –“ Um
dia, tinha nessa altura doze anos, João sentiu fome, Os pais, as outras pessoas
também sentiram fome. Os pais, as outras pessoas, todo o mundo nas Queimadas
sentiu fome. Os homens começaram por vender as mobílias. Depois arrancaram as
fechaduras e os batentes das portas e venderam. Aqueles que tinham casas
cobertas trocaram as telhas por comida. As terras também foram vendidas”.
Uma desgraça que avança lentamente e que, como não combatida, vai começar a
levar os socialmente mais frágeis.
O Rapaz Doente ou a Conjura trata com coragem de
um tema duro: a doença mais mortífera e transmissível e os medos que gerava. A tuberculose
não era tratável em Cabo Verde nesta época e até o Hospital se recusava a
receber doentes com medo da contaminação dos restantes pacientes. Note-se
contudo que em 1946 com a introdução da Estreptomicina a doença estava
controlada na Europa. Naturalmente que o Governo colonialista português não fez
chegar a Cabo Verde estes medicamente senão muitos anos depois.
Vida e Morte de João Cabafume rompe com a
ideia de fado, destino, de submissão do ser humano a forças mais fortes da
natureza ou da natureza da sociedade. João Cabafume não se verga, luta,
enfrenta tudo e todos, obstina-se em construir o seu próprio destino. Cabafume
rebela-se contra a Igreja – “Gentes, eu
gostaria de saber uma coisa: porque é que pobre vai à igreja, reza quando deita
e nunca sai da pobreza?”, contra a autoridade do Senhor Administrador,
contra as injustiças do patrão.
Caduca é a história de um rocegador que
procura pequenos pedaços de carvão para vender. Um homem livre “dono de todos os seus passos”, vivendo na
praia junto do mar, mas capaz de uma crítica social mordaz, profunda e
verdadeira “Como é que tendo todo o mundo
de comer peixe, pescador nunca sai da miséria? E as carregadeiras do cais? Saco
não tem pé. Carregadeira é que tem de botar no cachaço e carregar pró armazém.
Como é então que carregadeira é tão pobre que nem pode morrer?”
A par destes contos com forte cariz social
encontramos outros mais íntimos em que a placidez da vida familiar assume lugar
central e em que a vida social, com as suas intrincadas modulações, nos é descrita
com mestria.
Gabriel Mariano (1928-2002), figura cimeira
da geração da Nova Largada, a primeira corrente literária cabo-verdiana a
abraçar decididamente a causa da independência, juiz de profissão foi
perseguido pela PIDE, afastado da sua pátria, tem uma obra repartida pela
poesia, pelo ensaio e a literatura. Escreveu repartidamente em português e em
língua cabo-verdiana. Um forte cunho social, uma forte sensibilidade humana,
a par com uma qualidade literária ímpar tornam-no uma das maiores referências intelectuais do seu país e um dos grandes
contistas e poetas de língua portuguesa.
Sem comentários:
Enviar um comentário