quarta-feira, 25 de março de 2020

Viagens

Viagens de Olga Tokarczuk

Um livro, vagamente autobiográfico, repleto de histórias, pequenos contos, lições de história, fragmentos de vidas, revelações de ciências, recortes de almanaque, reflecções profundas sobre temas humanos como a memória, a cultura, a religião, a sobrevivência, o corpo humano e a sua anatomia, a morte, a decomposição e a preservação de cadaveres. Uma multidão de motivos e tópicos sucedem-se como uma corrente ininterrupta sem rumo definido nem meta estabelecida. Como a própria argumenta “é a constelação e não a sequência que é portadora da verdade”.

No centro, como um coração, ligando uma extensa rede de vasos que nos levam em todas as direções, encontra-se o tema do movimento e o seu corolário a viagem. Sabemos que partimos mas nunca onde nos leva o devaneio, o percurso desta seiva em ebulição.

Um ponto de vista peculiar “atração que sinto por tudo o que está estragado e rachado, e por tudo o que é imperfeito e defeituoso” e um objetivo condizente nas suas deambulações “rastrear erros na criação e desacertos na natureza”.

Imagens e frases memoráveis inundam as páginas - “uma dor crónica fossilizada”, “a casa pensa que o seu proprietário morreu”, “Como construir um Oceano. Instruções”, “Não queria inquieta-los com o facto de não existirem” e tantas outras.

Conceitos iluminados como o de aeroporto como “categoria especial de cidades-estados com uma localização permanente mas cidadãos que variam”, como o de guia turístico “descrever é destruir”, como o dos novos sentidos “a perceção da fala, o sabor da ausência, a faculdade de uma precognição especial. Saber o que não vai acontecer. Ter faro para o que não existe”.

O livro infelizmente contém também alguns preconceitos muito comuns em certos meios racistas do Norte da Europa sobre os povos meridionais “no Sul, onde o sol e o vinho soltam os corpos mais depressa e mais descaradamente”.

Histórias sem moral, expostas, para que cada um delas retire o sumo e a interpretação que souber ou entender como a da emigrante polaca habituada a envenenar animais que volta à sua terra natal para matar o seu primeiro namorado agora moribundo.  

Os ecos de Jorge Luís Borges são múltiplos, evidentes e conscientes prova de que uma linhagem não significa perda de vigor criativo nem de singularidade.

O livro ganhou o Man Booker International Prize de 2018 e nesse mesmo ano Olga Tokarczuk venceu o Prémio Nobel. Ambos muito bem merecidos. Ainda há alguma justiça no mundo.

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