Viagens
de Olga Tokarczuk
Um
livro, vagamente autobiográfico, repleto de histórias, pequenos contos, lições
de história, fragmentos de vidas, revelações de ciências, recortes de
almanaque, reflecções profundas sobre temas humanos como a memória, a cultura, a
religião, a sobrevivência, o corpo humano e a sua anatomia, a morte, a
decomposição e a preservação de cadaveres. Uma multidão de motivos e tópicos sucedem-se como
uma corrente ininterrupta sem rumo definido nem meta estabelecida. Como a
própria argumenta “é a constelação e não
a sequência que é portadora da verdade”.
No
centro, como um coração, ligando uma extensa rede de vasos que nos levam em
todas as direções, encontra-se o tema do movimento e o seu corolário a viagem.
Sabemos que partimos mas nunca onde nos leva o devaneio, o percurso
desta seiva em ebulição.
Um
ponto de vista peculiar “atração que
sinto por tudo o que está estragado e rachado, e por tudo o que é imperfeito e
defeituoso” e um objetivo condizente nas suas deambulações “rastrear erros na criação e desacertos na
natureza”.
Imagens e frases memoráveis inundam as páginas
- “uma dor crónica fossilizada”, “a casa pensa que o seu proprietário morreu”,
“Como construir um Oceano. Instruções”,
“Não queria inquieta-los com o facto de
não existirem” e tantas outras.
Conceitos
iluminados como o de aeroporto como “categoria
especial de cidades-estados com uma localização permanente mas cidadãos que
variam”, como o de guia turístico “descrever
é destruir”, como o dos novos sentidos “a
perceção da fala, o sabor da ausência, a faculdade de uma precognição especial.
Saber o que não vai acontecer. Ter faro para o que não existe”.
O
livro infelizmente contém também alguns preconceitos muito comuns em certos
meios racistas do Norte da Europa sobre os povos meridionais “no Sul, onde o sol e o vinho soltam os
corpos mais depressa e mais descaradamente”.
Histórias
sem moral, expostas, para que cada um delas retire o sumo e a interpretação que
souber ou entender como a da emigrante polaca habituada a envenenar animais que
volta à sua terra natal para matar o seu primeiro namorado agora moribundo.
Os
ecos de Jorge Luís Borges são múltiplos, evidentes e conscientes prova de que
uma linhagem não significa perda de vigor criativo nem de singularidade.
O
livro ganhou o Man Booker International Prize de 2018 e nesse mesmo ano Olga
Tokarczuk venceu o Prémio Nobel. Ambos muito bem merecidos. Ainda há alguma justiça no
mundo.
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