terça-feira, 8 de novembro de 2016

As velas ardem até ao fim



As velas ardem até ao fim de Sándor Márai

Uma história simples, bela, profunda e triste sobre os fundamentos da vida, a amizade, a paixão, o envelhecimento, o caracter e a traição mas também sobra a música, a linguagem, a morte e o assassínio revelando um autor capaz de com sobriedade e argucia penetrar, para lá das aparências e da espuma, até ao âmago da alma humana e aí encontrar a essência que impele a ação revelada pelos factos.

Controverso em muitas afirmações como esta “Uma pessoa não peca com aquilo que faz, mas com a intenção, com a qual comete isto ou aquilo”, principio com que os utilitaristas e muitos outros discordam, que serve de ponto de partida por uma ampla inspeção das motivações primordiais de um ato infame.
  
Um estilo seco, enxuto de adjetivos, reduzindo as descrições aos seus detalhes essenciais, nada está a mais, sem que, simultaneamente, nada falte. Direto mas poético, fluente mas penetrante, simples mas tão complexo.

Sobre o envelhecimento escreve certeiramente “Depois envelhece o seu corpo; nem tudo ao mesmo tempo, não, primeiro envelhecem os olhos, ou as pernas, o estômago ou o coração. Uma pessoa envelhece assim, por partes. A seguir, de repente, começa a envelhecer a alma: porque por mais enfraquecido e decrépito que seja o corpo, a alma ainda está repleta de desejos e de recordações, busca, deleita-se, deseja o prazer. E quando acaba esse desejo de prazer, nada mais resta que as recordações, ou a vaidade; e então é que se envelhece de verdade, fatal e definitivamente”.

Sobre a paixão “Porque amamos sempre a pessoa «diferente», procuramo-la em todas as situações e variantes da vida … sabes? O maior segredo e a maior dádiva da vida, quando duas pessoas «semelhantes» se encontram. Isso é tão raro, como se a natureza impedisse com força e astúcia essa harmonia – talvez que para a criação do mundo e para a renovação da vida necessita da tensão que se gera entre pessoas que se procuram eternamente, mas que têm intenções e ritmos de vida opostos”.

A paixão como o sentido da vida, como a grande justificação da nossa existência, o “verdadeiro conteúdo da nossa vida” – “Pensas também que o significado da vida não seja outro senão a paixão que um dia invade o nosso coração, a nossa alma e o nosso corpo, e depois arde para sempre até à morte?”. Por isso as velas ardem até ao fim.

O livro, publicado no Hungria em 1942, tem dois momentos infelizes, uma frase homofóbica e outra de caracter racista para com os malaios e que de algum modo também nos ofende aos portugueses. Sobre os olhos castanhos que nós estimamos ter “encantos tamanhos” ele diz “Têm olhos castanhos, como os cães tibetanos, essas bestas silenciosas, os mais traiçoeiros dos animais”.

Baseado num longo monologo, entremeado com curtos diálogos, o texto tem tudo para ser adaptado ao teatro, o que só veio a acontecer em 2006.

Márai saiu da Hungria no final da II Grande Guerra, em 1948, para se radicar nos EUA. Um erro trágico que lhe valeu a obscuridade. Desiludido acabou por se suicidar em 1989. A sua obra só foi publicada em inglês depois da sua morte. Mas como ele próprio escreveu “uma pessoa sempre responde com a sua vida inteira às perguntas mais difíceis”. Ficou um Prémio Nobel por entregar.

1 comentário:

  1. Uma análise de peso sobre a obra em apreço que revela uma extraordinária capacidade literária do crítico literário.

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