quarta-feira, 7 de março de 2018

A Sibila



A Sibila de Agustina Bessa-Luís

A história de três gerações de uma antiga família proprietários rurais, instalados no território que bordejam o rio Douro no período que vai de finais do século XIX a meados da centúria seguinte, conta pela linha feminina que vai de avó à neta, detendo-se longamente na personalidade marcante da personagem intermédia, Quina, filha de Maria e tia de Germa, a sibila.

Este é um mundo em que as mulheres são levadas ao altar aos 11 anos (“Olha que a minha prima do Soito casou aos 11 anos. Aos treze teve dois filhos dum ventre, e criou-os, que ninguém lá foi criar-lhos”), sofrem uma prolongada violência doméstica em silêncio, acatam a permanente infidelidade dos maridos, permanecendo presas à lida domestica e aos trabalhos manuais. A cultura é escassa, as crendices abundam, a religiosidade mistura-se com o anticlericalismo sem sair das baias do respeito pela autoridade. A moral está ausente, o assassínio visto com benevolência ao contrário do roubo proscrito e sancionado (“Um assassino é tolerado, pode partilhar o pão dos vizinhos, pode fazer esquecer o seu crime. Um ladrão lega a toda a sua descendência um ferrete”).

A vida no campo é farta para os fidalgos (“e usar com perfeito descaso a sua manta de marta como ninho de gatos recém-nascidos, e, mais tarde, entregar um enorme Rolls-Royce com faróis de prata, para poleiro das galinhas”), frugal e remediada para os proprietários, difícil para os caseiros, miserável para os criados e trabalhadores assalariados. As classes rigidamente constituídas parecem castas inamovíveis, ninguém ultrapassa o seu nascimento. Apenas a emigração, para o Brasil ou para as colónias, pode mudar o destino de um homem.

Escrito do ponto de vista dos proprietários rurais, repleto de preconceitos contra todas as outras categorias sociais, oferece uma visão a um tempo realista, no sentido em que descreve com precisão e detalhe todo o universo duriense, fatalista, não há como fugir ao destino, e negativa das pessoas e da sociedade que formam. Em todas as personagens os abundantes defeitos e limitações se sobrepõem às escassas virtudes com que nasceram.

O conservadorismo da autora adquire aqui uma tonalidade a um tempo inesperado e desapiedado na medida em que simpatiza com o imobilismo de uma sociedade tão desumana, cruel e atrasada.

A riqueza do vocabulário, o conhecimento dos mais curiosos hábitos alimentares (“o caldo de castanhas, tradicional do dia de finados”), costumes aristocráticos (“onde se queimava açúcar na pá da braseira, como desinfetante e para espalhar aroma”), crendices populares (“não hesitou em proceder com ele à cerimónia do «menino do fole», usada na região com as crianças de fala atrasada”), nomes tradicionais (“mas como todas as crianças antes do batismo são chamadas Custódios pelo povo”), em conjunto com as observações penetrantes (“esse manejo disfarçado, sub-reptício, próprio de todos os campónios quando lidam com dinheiro, seja quando recebem uma féria, ou quando pagam um imposto, um género mercantil ou simplesmente entregam a côngrua ou dão uma esmola”), as sentenças aldeãs (“enumerava os rigores da mulher perfeita – larga em três sítios, estreita em três sítios, branca em três sítios, negra em três sítios, alta em três sítios, pequena em três sítios”), tornam o texto de uma grande variedade conferindo-lhe autenticidade.


Um livro estranho, lembra em muitos aspetos Thomas Mann, que alia a qualidade literária, ao conhecimento profundo das paisagens que descreve e das pessoas que retrata com grande realismo, mas simultaneamente, por tão fascinado e apegado a esse mundo, parece indiferente e insensível à sua crueldade e à necessidade de sobre ele construir uma outra sociedade mais humana.



1 comentário:

  1. Olá!
    Na faculdade tive algumas aulas a respeito desse livro e fiquei muito interessada em lê-lo, o tempo passou e ainda não li, mas essa história me parece retratar muito bem a vida difícil que nós mulheres temos dentro dessa sociedade machista e acredito ser muito importante conhecer esse ponto de vista do passado para entender e tentar melhorar o presente.

    http://livrelendo.blogspot.com.br

    ResponderEliminar